sexta-feira, 24 de abril de 2020

CAIR NA REAL E AGIR

Redução ainda maior do teto orçamentário para 2021 pode ser vital para manter a saúde financeira das equipes, mas Ferrari e Red Bull já não gostaram tanto da idéia.

            Há muito tempo que a Fórmula 1, principal campeonato mundial do universo do esporte a motor, se tornou um certame cada vez mais restrito, e com uma competitividade que hoje em dia não é lá das melhores, com muitos poucos times tendo chance real de vencer, e muitas vezes rejeitando a adoção de medidas que poderiam fazer com que o campeonato se tornasse mais acessível, e talvez menos proibitivo. O problema era fazer com que os times aceitassem a implantação de algumas normais que, bem aplicadas, poderiam ter feito muito pela melhoria do esporte.
            Um dos problemas era o regulamento da categoria, que exigia concordância unânime de todos os times participantes para que fossem implantadas certas mudanças. E bastava apenas um dos times discordar, para alguns esforços irem para o vinagre, quando se tentava implantar determinadas regras. Outro problema era que a Ferrari, o time mais antigo da competição, possuía uma atribuição especial que lhe permitia “vetar” certos itens do regulamento, caso os achasse prejudiciais – a eles próprios, diga-se exatamente.
            A unanimidade para se aprovar ou vetar certas mudanças no regulamento, em tese, era defendida para que times em minoria pudessem se defender de regras que fossem impostas por uma maioria, que poderia lhes ser prejudicial. De certa forma, era também uma maneira de Bernie Ecclestone, antigo mandachuva da categoria máxima do automobilismo, preservar o seu poder de mando no campeonato. Bernie sabia muito bem que, se os times se unissem, fosse para qual propósito tivessem, isso poderia minar sua posição de comando, então, nunca foi a favor de que os times pudessem ser os mais unidos. Sempre deu algumas regalias veladas para a Ferrari, e aproveitava-se das discordâncias que as escuderias possuíam para que dessa forma, elas raramente conseguissem unir esforços diante de uma causa comum.
            Não há como negar que Ecclestone fez muito pela F-1, fazendo o certame ser hoje o que é. Mas, inegavelmente, também deixou de fazer algumas melhorias no esporte, porque isso simplesmente não lhe interessava, ou poderia comprometer o seu poder de mando via FOM. Se ele achava que entendia o que era melhor para o esporte, era essa sua grande justificativa. Mas todo mundo concorda que, em momentos passados, algumas regras que poderia ter sido úteis para manter a viabilidade dos participantes do esporte poderiam ter sido muito bem-vindas.
            Ocorre que a F-1 virou um mundo fechado em si mesma, e com essa dificuldade burocrática para se alterar certos procedimentos, acabou ficando ainda mais hermética a aceitar certas mudanças. E, nos tempos atuais, em uma situação extraordinária como a que estamos vivendo neste momento, onde tudo está mais incerto do que nunca, tornou-se urgente rever diversas posições. E uma delas é justamente o custo de competição que a F-1 hoje exige de seus participantes, a ponto de termos, mais uma vez, alguns times vivendo na corda bamba financeira, onde os investimentos de competição continuam altos, para retornos cada vez mais incertos. E com o dinheiro deixando de entrar, pelo campeonato estar suspenso, diante da pandemia da Covid-19, é preciso entender que o momento precisa de mudanças urgentes, que não podem mais ser postergadas, pura e simplesmente.
            Uma hora, todos teriam de cair na real. E felizmente, os próprios times chegaram a um consenso que até pouco tempo atrás, parecia impossível, com relação à adoção de um teto orçamentário para a competição na F-1. Não é uma idéia nova, mas finalmente se conseguiu o apoio necessário para implantá-la, a partir da temporada de 2021. O objetivo é tornar a categoria máxima do automobilismo muito mais acessível e viável, e com isso, talvez atrair mais participantes, e ajudar os times que já participam a se manterem financeiramente saudáveis. Foi uma vitória sem precedentes para o estilo de vida que a F-1 se acostumou a ter nas últimas décadas.
            Ocorre que, diante da dimensão do problema atual, mesmo os valores estipulados para o teto orçamentário em 2021 podem precisar ser ainda mais baixos, uma vez que o fluxo de caixa está seriamente comprometido no atual momento, enquanto a situação não se normaliza. E foi proposto valores mais baixos, de forma a deixar os times menos apertados financeiramente, neste momento crucial. Mas, eis que Ferrari e Red Bull, dois times que não possuem problemas financeiros, começaram a discordar dos novos valores mais baixos, que contam com a anuência dos demais times, ávidos por reduzirem suas despesas, com alguns deles já tendo tomado providências de dispensas de funcionários, e reduções salariais de seus integrantes, e até mesmo de seus pilotos. O bate-boca já começou, e um dos times mais visados pelas críticas é justamente a escuderia de Maranello, que alegou que reduzir ainda mais o teto orçamentário coloca em risco os empregos que o time mantém em sua divisão de competição. Um corte ainda maior das verbas de competição permitidas obrigaria a dispensa de vários funcionários.
Time de Maranello alega que redução maior do teto orçamentário obrigaria a demissões de parte de seus funcionários.
            Logicamente que a justificativa da Ferrari não convenceu muito bem. Ninguém quer demitir seus funcionários, mas a F-1 acostumou-se a ter estruturas de competição altamente caras e gigantescas, e com um número de funcionários talvez irreal para as suas necessidades. Cortes serão necessários. Não é a melhor das soluções, mas se com isso conseguir manter os times vivos financeiramente na disputa, pode ser necessário fazê-lo. Só que aí, obviamente, a Ferrari, aproveitando a posição da Red Bull, resolve fazer uso do regulamento que falava do apoio unânime de todos os participantes para se aprovar novas regras, e com isso, resistir à tentativa de se baixar ainda mais o teto orçamentário. E com a maioria das escuderias clamando por reduzir os custos, temos um impasse causado principalmente por um único time.
            Por isso mesmo, a FIA resolveu tomar, enfim, uma atitude, modificando o item do regulamento que exigia acordo unânime para tais mudanças. O anúncio feito hoje pela entidade que comanda o automobilismo mundial fez um adendo ao artigo 18.2.4 do Código Esportivo, para mencionar que, “em circunstâncias excepcionais, e se a FIA considerar a mudança essencial para proteger o campeonato em questão, o acordo da maioria dos competidores inscritos deve bastar”. E, como estamos vivendo um momento justamente de circunstâncias excepcionais, as mudanças propostas precisarão então de 6 dos 10 votos dos times participantes para ser implementada. E com isso, justamente a Ferrari perde o seu poder de veto a mudanças que poderiam não se serem proveitosas, ou convenientes.
            Não vai adiantar a Ferrari coagir seus times clientes, pois Alfa Romeo e Hass, juntamente com a escuderia italiana, formam 3 votos. Ainda teríamos 7 votos, com os demais times se unindo. E mesmo que a Red Bull não recue, ainda assim teríamos 6 votos. Ficará complicado, entretanto, se o time dos energéticos, que é dono da Alpha Tauri, forçar o voto de seu time “B” a ser igual ao seu, caso resolva se manter irredutível nesta questão, o que parece um pouco menos provável que a escuderia italiana. Neste caso, ficaríamos em um empate de 5 a 5, mas se levarmos em conta que o time satélite da Red Bull não tem o mesmo orçamento do time principal, e se eles forem mais razoáveis, talvez tenhamos aí uma boa chance de finalmente se implantar algumas medidas emergenciais que possam ajudar a salvar a competição como um todo.
            Como diz o velho ditado, é preferível perder os anéis ao invés dos dedos, e se até mesmo a campeoníssima Mercedes aceitou o teto orçamentário, vendo isso como algo essencial para que a F-1 continue viável, até porque a montadora alemã gostaria de gastar bem menos para participar da brincadeira, é preciso cair na real, e se fazer algo efetivo para reduzir os custos. Ou corrermos o risco de ficarmos literalmente sem competição, uma vez que as elevadas quantias hoje necessárias para se conseguir só competir, já são enormes.
F-1 estuda retorno das corridas para julho, com a possibilidade de realizar as corridas sem a presença de torcedores, por questões de segurança, se for necessário.
            Há pouco mais de 10 anos atrás, a F-1 precisou se mexer bastante neste sentido, diante da crise econômica mundial de 2008, que provocou muitos estragos em muitos países do mundo. Os custos já altíssimos da F-1 tiveram que ser brecados à força, e a principal medida foi proibir os testes dos times, que ficaram reduzidos aos dias da pré-temporada, e um ou outro dia escolhido pela própria FIA, para que as escuderias pudessem fazê-los todos juntos. Todos os times tinham praticamente uma equipe só para testes, e times como a Ferrari, por exemplo, testavam praticamente toda semana, algo que nem todo mundo tinha condição de fazer. A economia alcançada foi notória, embora obtida à custa de muitas demissões em todos os times, que tiveram que se desfazer de suas equipes de testes, as quais já não teriam mais propósito de existirem. Foi uma medida dura, mas extremamente necessária, e isso ajudou os times a conterem a escalada dos custos de competição.
            Um problema que surgiu, contudo, é que, passada a crise econômica, seus efeitos colaterais se tornaram bem duradouros, entre eles, a diminuição sistemática de empresas dispostas a patrocinar eventos automobilísticos. Mesmo com gastos tendo sido reduzidos, os valores de patrocínio das escuderias continuaram elevados, e muito menos gente tinha disposição para aceitar tais empreitadas, de modo que, se os gastos diminuíram, o dinheiro potencial disponível também caiu bastante, de forma que o alívio proporcionado pelas novas regras não foi tão efetivo como se esperava. Hoje, o panorama é similar, com o agravante de que o campeonato foi suspenso, com provas canceladas e/ou adiadas, e o fluxo financeiro de caixa, comprometido pela paralisação das atividades. A própria Williams, time que enfrenta dificuldades financeiras, já declarou que se ficar sem participar de corridas este ano, e sem receber por isso, terá sua sobrevivência grandemente ameaçada. E não é a única que pode sofrer com isso.
            Embora a situação no Velho Continente comece a dar alguns sinais de estabilização na pandemia da Covid-19, ainda é incerto apostar com alguma certeza de que as atividades de pista possam ter início em julho. E mesmo que tenham, começam a ser aventadas as possibilidades de tais corridas serem realizadas em condições “de segurança”, como por exemplo, sem a presença de público, a portas fechadas, algo que certamente diminuirá a viabilidade econômica destas corridas, e consequentemente, menos caixa para a FOM e o Liberty Media, o que significará menos verbas a serem distribuídas para os times, os quais também precisarão renegociar com seus patrocinadores os valores de exposição de suas marcas.
            E, em termos gerais, o relaxamento da quarentena não significa um retorno imediato da rotina que conhecíamos. Será preciso ver como isso se dará, e quais empresas poderão retomar suas atividades, o que será mais fácil para alguns, e mais difícil para outros. E isso também deverá se refletir na disposição das empresas que normalmente apostam em patrocínios esportivos, que poderão ver oportunidades e chances de renegociar suas atuais empreitadas, ajustando o fluxo de gastos diante de um retorno mais modesto. E também impactar quem pensava em apoiar algum time ou corrida para 2021. Resumindo: ninguém sabe quando o fluxo financeiro voltará ao normal, e em que níveis isso se dará. Para alguns, a economia, e várias empresas, pelo menos as que tiverem condições, vai demorar pelo menos um ou dois anos para voltarem ao patamar “normal”, se tanto. E neste período, gastos terão de ser controlados.
Com recursos incertos, alguns times podem sofrer colapso financeiro se o campeonato não for retomado este ano. Williams é um dos times na corda bamba.
            Com esta incerteza sobre quando o dinheiro começará a rolar novamente, é mais do que justificado reduzir o teto orçamentário para a nova cifra de US$ 125 milhões, sendo que alguns defendem que esse valor caia até para os R$ 100 milhões. Pode parecer exagero, como a Ferrari alega, um corte desta proporção, mas com o clima de incerteza pairando sobre toda a economia mundial, não há como garantir que os patrocínios que porventura sejam firmados não sofram reduções drásticas de valor, se as escuderias quiserem atrair anunciantes, que antes de mais nada, precisarão normalizar seu balanço financeiro, onde certamente cortarão despesas onde forem possíveis. E podem apostar que gastar rios de dinheiro patrocinando times e corridas não vai estar na lista de prioridades essenciais a serem retomadas por muitas companhias.
            Por isso mesmo, é vital que os custos de competição sejam reduzidos tanto quanto possível. A F-1 pode continuar sendo gigante sem precisar de estruturas faraônicas, ou fábricas e complexos gigantes só para se poder competir. Conforme Gunther Steiner, chefe da equipe Hass declarou, a F-1 não pode ser “buraco sem fundo” de gastos, apenas para se poder competir. Como ele frisou, é necessário ter um retorno destes gastos. E olhe que a Hass é um time que, desde sua estréia na categoria, vem se pautando por uma gestão parcimoniosa de seus recursos para participar da competição. E antes da pandemia da Covid-19 se alastrar, já havia rumores de que Gene Hass anda a repensar a participação de seu time na F-1, se não obtivesse melhores resultados nesta temporada. E não é por ser um homem rico, que Hass vai simplesmente torrar dinheiro na F-1 sem ver um retorno que considere razoável ao dinheiro investido. Mas, e quem não tem este dinheiro, que agora fica cada vez mais escasso, e com retorno incerto?
            Mesmo a Liberty Media, tentando ajudar ao fazer um adiantamento de verba às escuderias, para ajudar nesta travessia complicada de atividades suspensas, precisará voltar a ter um fluxo de caixa normalizado, se quiser promover uma distribuição de recursos mais equânime dos lucros gerados pela competição. Mas é preciso haver competição, para que os lucros possam surgir, e que possam ser distribuídos aos times participantes. Lucros que certamente não serão os esperados de antes de toda essa situação atual surgir.
            Esperemos que todos possam chegar a um bom termo de acordo que permita ser benéfico, tanto quanto possível, ao maior número de envolvidos na competição. Talvez haja algumas perdas neste processo, mas o mais importante é salvaguardar a saúde financeira da F-1 como campeonato e competição. Se rebaixar os custos de competição não for feito com afinco, podemos assistir a uma quebradeira de times, ficando apenas aqueles que não dependem tanto das verbas tanto da FOM quanto de seus patrocinadores, mas seria ridículo termos uma corrida com apenas 6 ou 8 carros. Se os times quebrarem, outra pergunta incômoda toma seu lugar: quem teria interesse em competir numa F-1 com tais gastos? E olhe que já se tentou atrair muita gente graúda, além do retorno de alguns que lá já estiveram. Mas que, diante dos altos custos, e garantia incerta de sucesso na disputa, preferiram ficar de fora, ou sem planos de retornar à disputa, encontrando outros certames onde podem investir melhor seus recursos e obter mais retorno.
            Está na hora de a F-1 encarar de vez o grande choque de realidade que está acontecendo, e se dar conta de que, se não fizer algo, com algum controle, algo irá acontecer, e com grande chance de ser totalmente descontrolado, para prejuízo ainda maior de todos... Não se pode postergar mais certas providências...

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