sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

DESTINO DA F-1: AS RUAS?

Dottonbouri, um dos locais mais visitados por turistas em Osaka, que pretendia sediar uma corrida de F-1 em suas ruas. Mas Suzuka, palco tradicional do GP, vai manter a corrida pelos próximos anos. E depois, entrentanto?

            O campeonato da Fórmula 1 de 2024 deve enfim bater o recorde de corridas em um só ano na categoria máxima do automobilismo, com 24 etapas. Em anos recentes a Liberty Media já tentou chegar a este número de provas, mas diversos fatores, em especial a recente pandemia da Covid-19, impossibilitaram que se chegasse a tal cifra, já que várias etapas acabaram canceladas, sem que se conseguisse substituir todas as provas que não puderam ser realizadas e/ou adiadas. O número alto de corridas, contudo, não é a única preocupação para a própria categoria, que teme o esgotamento de seus funcionários em conseguir dar conta de um ritmo tão frenético de corridas disputadas tão próximas umas das outras. Os fãs, por sua vez, se deparam agora com outra preocupação: a da urbanização crescente do calendário da competição, que pode descaracterizar a categoria, na opinião de muitos.

            Por urbanização, entenda-se realizar provas em circuitos de rua, e não em autódromos permanentes. Até hoje, as pistas citadinas sempre foram vistas como exceções no calendário, amplamente preenchido com pistas permanentes, os autódromos. Não é surpresa para ninguém que as mais recentes corridas incluídas no calendário da F-1 tem mostrado uma forte inclinação mais para pistas de rua do que para circuitos em autódromos, e os fãs se perguntam se isso pode vir a ser prejudicial para a competição, já que para uma etapa entrar, normalmente uma acaba saindo, e dependendo da situação, é uma pista permanente a mais possível de ser enxotada da categoria, diante de provas em que os promotores aceitem pagar taxas bem mais elevadas.

            Entre os exemplos de novas corridas de rua propostas, Osaka, no Japão, apresentou interesse em sediar a etapa japonesa do calendário da F-1 em suas ruas, o que pode tirar o GP nipônico do autódromo de Suzuka, seu principal palco desde que a corrida passou a integrar em definitivo o campeonato nos anos 1980, quando deixou de sediar a prova apenas por duas oportunidades, e em 2020 e 2021, por causa da pandemia da Covid-19. Suzuka, na região de Mie, fica ao lado da área de Aichi, onde está Nagoya, uma das principais metrópoles do Japão, enquanto Osaka fica na área de Kansai, e é a segunda maior zona metropolitana do arquipélago japonês. Mas os planos da cidade terão de esperar, já que Suzuka conseguiu renovar seu GP até 2029.

Madri foi confirmada para ter seu GP em 2026, e já tem até prévia do traçado que será utilizado. E Barcelona, dançou?

            E tivemos também Madri, cuja corrida já foi até oficializada para a temporada de 2026, tirando a prova espanhola de seu mais conhecido palco, o Circuito de Barcelona, introduzindo uma nova variável à competição. É verdade que alentam a possibilidade do circuito da Catalunha seguir no calendário, com o país ibérico sediando duas etapas, como já ocorreu anos atrás, quando a F-1 também teve uma corrida em Valência, com o nome de GP da Europa, aproveitando a onda da Alonsomania. Não por acaso, Barcelona anunciou um megaprojeto de investimentos para se manter firme no calendário da F-1, mesmo com o anúncio feito a respeito da prova de Madri, atualizando seu paddock e as estruturas de arquibancadas e acessos, tanto internos quanto externos ao circuito.

            Neste ano, temos em pistas urbanas as provas de Mônaco, Jeddah, Singapura, Miami, Las Vegas, e Baku. São seis pistas, e se levássemos em consideração a entrada de Osaka e Madri no calendário, passaríamos a ter 8 provas, em um calendário de 24 corridas no ano, um terço de toda a temporada. Daí a dizer que as pistas de rua estão tomando conta vai um certo exagero, e não podemos dizer que estas provas não agreguem pontos positivos à competição. Não que não haja pontos negativos, mas circuitos permanentes também tem suas falhas, não sendo perfeitos como locais de provas, embora por motivos diferentes.

            Ainda temos pistas que podem ser consideradas um meio-termo, entre pistas de rua e circuitos permanentes, exemplos que classificam Melbourne e Montreal. Se não oferecem um traçado tão flexível, também não é tão travado e cheio de muros, ainda estão localizados dentro de grandes metrópoles, e possuem um grau limitado de intervenção e alterações na pista, diante das estruturas existentes nas proximidades.

            E qual o dilema entre circuitos urbanos e circuitos permanentes? Isso vai de detalhes factíveis a opiniões dos fãs, com argumentos válidos tanto para os que são a favor de um ou de outro, como para quem defende a coexistência dos dois tipos de pista.

Las Vegas (acima) quase ficou na corda bamba em relação ao sucesso do seu GP, que salvou-se por uma boa corrida. Já Miami (abaixo) ainda não cativou o pessoal.


            Para o fã mais “hardcore”, só os autódromos reais podem exibir o verdadeiro potencial de um carro de competição de F-1, que é colocado à prova nas mais variadas curvas e traçados, que podem ser projetados com toda a liberdade para oferecerem desafios á capacidade dos carros e de pilotagem dos competidores. Circuitos com trechos realmente de fazer pilotos e expectadores respirarem fundo, como por exemplo os trechos da Eau Rouge em Spa, na Bélgica; a temida 130R em Suzuka, no Japão; a Parabólica em Monza, na Itália, e por aí vai. Pistas urbanas, pelas poucas opções viáveis de traçados, sempre terão um impeditivo para que os carros possam mostrar tudo do que são realmente capazes, para não mencionar dificuldades extras de ultrapassagens quando os traçados são estreitos, ou de retas curtas demais para que os pilotos consigam executar as manobras com o êxito necessário.

            Não sou tão inflexível assim. Acredito que misturar tipos de pistas é bom para a competição, e obriga os pilotos e equipes a terem de se adaptar a todo tipo de traçado, e teoricamente, nem todos vão conseguir isso, o que pode propiciar surpresas e resultados inesperados, ajudando a empolgar mais a competição. Mas nem sempre a teoria corresponde à realidade, e muitas vezes, diante da capacidade de simuladores e dados de testes e provas anteriores, muitas vezes todo mundo já tira de letra as dificuldades que um circuito apresenta, neutralizando o fator “novidade” ou “diferente” que cada tipo de pista oferecia.

            Circuitos de rua costumam ser muito mais nervosos para os competidores, que se acostumaram nos últimos tempos a pistas permanentes com generosas áreas de escape, muitas delas asfaltadas, que permitem ao piloto escapar do traçado sem maiores problemas, tirando o tempo perdido, se bem que ultimamente o que mais tem gerado são as punições por extrapolar o limite da pista, que em alguns autódromos levou a uma panaceia de punições que só desmoraliza a competição na opinião de muitos, que viam antigamente os pilotos saírem da pista, e voltarem sem toda essas frescuras. Bom, pelas limitações óbvias de onde são montados, circuitos de rua possuem normalmente poucas áreas de escape, e os muros geralmente estão bem ali perto. Um erro por parte do piloto, ou um problema no carro, e ele pode ir direto no muro, acabando com sua corrida ali mesmo, em um acidente que pode ter sérias consequências, dependendo do local e de como se bate. Os pilotos precisam descobrir um limite ainda mais estrito, chegando a passar a centímetros ou milímetros da barreira, onde tem de demonstrar controle absoluto. Isso costuma separar os pilotos, mostrando quem é bom de braço no controle do carro, e quem não é tão bom assim. Antigamente isso era uma receita infalível para alterar a relação de forças, permitindo que pilotos mais talentosos, mesmo com equipamentos menos competitivos pudessem fazer a diferença numa corrida neste tipo de pista, oferecendo-lhes a chance de brilhar.

Mônaco (acima) se mantém pelo seu charme e tradição, mas as corridas costumam ser enfadonhas pela falta de pontos de ultrapassagem. Já Baku, no Azerbaijão (abaixo) alternou boas corridas com provas monótonas, apesar das qualidades da pista urbana.


            Hoje, infelizmente, o predomínio da performance dos carros é tamanho que os pilotos não conseguem fazer mais tanta diferença. Ela ainda existe, e pode ser comprovada, mas não é mais tão pronunciada quanto nos velhos tempos. Mesmo os circuitos de rua sentem isso, e a imprevisibilidade, diante também de outros aspectos, como a extrema fiabilidade dos carros atuais, diminuiu muito, sendo raros os GPs com resultados diferenciados em relação ao restante da competição. Mas isso ocorre nos dois tipos de pistas, de modo que não se pode dizer que tal pista é melhor que outra apenas pela sua diferença de concepção. Há diferenças de fato entre cada tipo de pista, mas não é apenas isso que determina o sucesso ou fracasso de uma corrida em termos esportivos. Da mesma maneira que temos pistas de rua com provas modorrentas, sem emoção ou disputas que empolguem, há pistas permanentes que também não apresentam corridas bem disputadas.

            Provas de rua, contudo, apresentam desafios adicionais para a F-1 correr nestes locais, do que as tradicionais corridas em autódromos, especialmente no que tange à burocracia para realização das provas. O maior desafio é achar ruas que possam servir para serem transformadas em um percurso de corrida, e não são todas que podem se encaixar nas necessidades para tanto. Isso coloca limites estritos quanto ao tipo de traçado, sua extensão, e envolve dificuldades adicionais com as administrações locais, percalços que não existem quando se realiza uma corrida em um autódromo, espaço construído justamente para isso, e que pode oferecer muito mais opções do que as pistas citadinas. Vejam Las Vegas, a última adição ao calendário: durante os meses que antecederam a corrida, as obras para se criar as estruturas permanentes que serviriam para o GP atormentaram a vida dos moradores locais, que colocaram inúmeras críticas à realização da corrida, que teve também problemas iniciais nos treinos, que resultou em adiamento das atividades e problemas de horário, já que as vias precisavam ser liberadas para o trânsito de rotina da cidade. Felizmente, para sorte dos organizadores, a corrida foi boa, apesar dos exageros cometidos em transformar o GP em um “megaevento” esplendoroso, com a corrida quase virando coadjuvante das atividades do fim de semana, quando deveria ser o contrário, porque as críticas da população poderiam comprometer a realização da corrida, caso as coisas não dessem resultado. Este tipo de problema não ocorre nos autódromos, ainda que eles possam ter problemas inesperados com sua infraestrutura, mas que não impacta a vida normal dos locais onde as provas são realizadas, pelo menos como uma corrida de rua faz.

            Em termos de emoções das provas, as opiniões também se dividem, quanto à atratividade das pistas urbanas. O exemplo mais contundente é o de Mônaco, que só se mantém no calendário por sua tradição, deixando de oferecer, há muito tempo, corridas com várias ultrapassagens e emoção destacada, diante da impossibilidade das ruas do pequeno Principado oferecerem um traçado melhor. Na verdade, o problema não é somente o traçado, mas o tipo de carro que são os F-1, e isso já não é de hoje. Basta ver como a F-E apresentou uma corrida muito mais agitada e emocionante, correndo na mesma pista, com seus monopostos elétricos.

            Mesmo que o circuito seja de fato tecnicamente bom, nem por isso mesmo as corridas podem deixar de apresentar resultados variados. Baku, no Azerbaijão, já ofereceu excelentes provas, mas também tivemos alguns GPs bem enfadonhos. Esta é uma característica que as pistas permanentes também apresentam, não podendo garantir que toda corrida seja um festival de disputas e emoções na pista.

            O temor é de que a Liberty Media se empolgue demais e coloque ainda mais provas de rua no calendário, com o intuito de criar novos “megaeventos”, como fez nas novas provas nos Estados Unidos, medo que não pode ser descartado. O resultado da etapa de Las Vegas, a primeira que a Liberty realmente pagou para ver o que acontecia, esteve perto de ser um monumental fracasso. Desde o início, como mencionei, a população local criticou o empreendimento, pelas dificuldades que enfrentaram na sua vida cotidiana durante várias semanas, tendo gente que até quis processar a organização da corrida pelos percalços sofridos. E vários pilotos, entre eles Max Verstappen acharam ridículas as atividades que tiveram de participar fora da pista, na ânsia da Liberty de fazer do momento um grande show. Não fosse a corrida ter sido boa, apesar dos percalços ocorridos, teria até se esquecido que o objetivo ali era fazer uma corrida, tamanho o destaque que as atividades extra-pista, ocuparam no noticiário. E para os fãs, o GP é a essência das atividades do fim de semana, e não os apensos que os organizadores fazem em volta para ajudar a vender a competição.

            Mas agora, com o balancete do GP de Las Vegas apontando os ganhos financeiros para a cidade, a resistência ao GP diminuiu, e de fato, boa parte dos problemas foram causados pela construção das arquiteturas permanentes que servirão ao GP nos próximos anos, de modo que os problemas de montagem da pista já a partir deste ano deverão ser bem menos invasivos e incômodos. Mas espera-se que a Liberty tenha mais comedimento, e não saia programando mundos e fundos de atividades notáveis extra-pista como fez na última corrida. Mas, será que eles aprendem com seus erros? Difícil dizer, haja visto o que vimos em Miami nas duas edições da corrida realizadas até aqui, e que periga ser o norte a ser seguido pelos atuais mandatários da categoria máxima do automobilismo.

            No caso da corrida em Madri, a intenção é obviamente replicar, ao modo dos espanhóis, o estilo de prova/evento que o Liberty implantou nos Estados Unidos. Em termos positivos, poderíamos citar as expectativas de que a nova pista, cujo layout já foi divulgado, possa render melhores provas do que na pista da Catalunha, que há anos não rende boas corridas, em virtude de ter sido, por muitos anos, a principal pista de testes da pré-temporada das equipes da F-1, que conhecem o circuito em todos os seus pormenores, o que dificulta a ocorrência de surpresas nas provas lá realizadas, com raras exceções. Mesmo com sua grande reta, os pilotos têm tido muitas dificuldades nas disputas de posições mesmo com o uso do DRS, devido ao alto conhecimento que possuem do circuito, de forma que nenhuma equipe ou piloto consegue dar o pulo do gato na corrida, e sair fora do panorama geral esperado.

Montreal (acima) e Melbourne (abaixo) possuem pistas montadas dentro de parques, ficando em um meio-termo entre pistas de rua e autódromos permanentes.


            Se a Liberty e os espanhóis mantiverem a sobriedade, Madri merece muito o benefício da dúvida, antes de se sair atirando contra a proposta da cidade de realizar um GP de F-1. Pode dar certo, como também pode não dar certo, mas só se saberá quando o GP for realizado, que pode até se manter firme no calendário da competição, ou não. Vamos lembrar que Valência também teve seu GP de F-1 em suas ruas, e de início, até que a corrida foi bem-vinda, antes de acabar se inviabilizando, e saindo da competição.

            E o projeto de Osaka, no Japão? Aqui é difícil dar uma resposta, até porque, diferente de Barcelona, Suzuka é uma das pistas mais complexas da temporada, pelos dois trechos distintos que possui, um deles exigindo agilidade do carro, e outro pedindo velocidade de ponta. E isso sem contar uma das curvas mais rápidas da temporada, a 130R. O charme da pista nipônica é ser um projeto das antigas, que desafiavam muito mais pilotos e carros do que projetos mais atuais, “pasteurizados”, e se Madri ainda pode ter uma chance de oferecer espetáculo melhor que Barcelona, o mesmo dificilmente se veria em Osaka, pois um circuito urbano já entraria em tremenda desvantagem com o pista de Suzuka, e olha que ainda nem temos idéia de onde Osaka montaria sua pista de corrida. Felizmente, isso foi adiado por agora, mas vamos esperar para ver o que acontece mais à frente, quando Suzuka foi novamente renovar seu contrato, agora estendido até 2029, para felicidade e tranquilidade dos fãs da velocidade.

            É saudável para a F-1 termos esse interesse todo em novos locais quererem sediar um GP. Devidamente analisados e aprovados, eles podem contribuir para aumentar a emoção das disputas da categoria máxima do automobilismo. Mesmo os melhores projetos, contudo, podem não dar certo como se espera, mas merecem ter sua chance de mostrar o que podem fazer. Desde que a Liberty mantenha seu equilíbrio na diversidade de pistas da competição, não há o que se temer. Mas o problema é que a Liberty ultimamente vem tomando decisões que colocam sua credibilidade em dúvida, e é aí que mora o problema, causando desconfiança e apreensão nos fãs da velocidade, em sua ânsia financeira e/ou procurando novos fãs a qualquer custo. Só nos resta ter fé e esperança... E ver no que vai dar...

 

 

Certo: a bomba do momento é a ida de Lewis Hamilton para a Ferrari em 2025, mas tratarei disso na coluna da semana que vem. Neste momento, todos estão falando nisso, mas prefiro esperar um pouco para dissertar com calma a respeito. E o assunto do texto de hoje, embora não tão impactante, é pertinente para discussão. Uma boa leitura a quem tiver interesse...

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