sexta-feira, 16 de outubro de 2020

REI MORTO, REI POSTO

Lewis Hamilton recebe de Mick, filho de Michael Schumacher, uma réplica do capacete do piloto heptacampeão mundial de F-1, em homenagem pelo inglês igualar as 91 vitórias obtidas pelo piloto em sua carreira na categoria máxima do automobilismo.

            E a F-1 tem um novo recordista, isto é, um recorde da categoria, considerado até anos atrás como inalcansável, acabou de ser alcançado, e não será o único. Muito em breve, outra grande marca também será igualada, e por Lewis Hamilton, que domingo passado, ao vencer o Grande Prêmio de Eifel, na pista de Nurburgring, chegou à sua 91ª vitória na categoria máxima do automobilismo, marca que o coloca, pelo menos até a próxima vitória, ao lado de Michael Schumacher, que era o recordista absoluto de vitórias na F-1 até então.

            Recordes são feitos para serem batidos. Por mais improváveis que possam ser, em algum momento, as melhores marcas já obtidas em algum esporte podem vir a cair. Diversos fatores, contudo, podem dificultar ou até impossibilitar a obtenção de novas marcas em alguns tipos de modalidades, mas todos os recordes foram feitos para serem quebrados um dia. No caso da F-1, os recordes mais expressivos sempre foram o número de títulos e o número e vitórias, entre outros. São as marcas que os fãs mais prestam atenção, e em torno dos quais costumam surgir inúmeras discussões, debates, e até mesmo brigas, dependendo da situação.

            Quando Michael Schumacher conquistou o seu 5º título, em 2002, a F-1 caiu de joelhos. O alemão estava apenas igualando o número de títulos alcançado por Juan Manuel Fangio, até então o piloto com maior número de campeonatos da história da categoria. O argentino faturara 5 títulos, e desde então vários pilotos haviam tentado alcançar e repetir seu feito, mas o máximo que haviam conseguido eram 3 títulos. E não foram pilotos quaisquer a tentarem. Nomes como Jack Brabham, Jack Stewart, Nélson Piquet, Niki Lauda, e até Ayrton Senna, não conseguiram “romper” a barreira dos três títulos, por diversas razões. Houve apenas uma exceção: Alain Prost, que conseguiu 4 títulos, e se tornara, até o fim do século passado, como o maior vencedor de corridas (51 vitórias), e o segundo maior campeão, com seu tetracampeonato.

            Michael Schumacher, com todo o time da Ferrari voltado para si, desde 1996, estabelecera a meta de levar o time rosso de volta ao título, e com muito trabalho, e competência, estabeleceu de 2000 a 2004 o maior período de domínio ininterrupto de um mesmo time na história da F-1, e triturou todos os recordes existentes na categoria, em especial o de vitórias de Prost, e o de títulos de Fangio. Ao final de 2006, quando anunciou sua primeira aposentadoria, já acumulava sete títulos, e nada menos do que 91 vitórias. Até mesmo o recorde de pole-positions, 65, estabelecido por Ayrton Senna ainda em 1994, fora alcançado e superado, com Schumacher a ostentar 68 poles no seu currículo, o que em termos estatísticos, o faziam o maior piloto de todos os tempos, discussão que durou, e ainda dura, até hoje, quando os feitos do alemão são confrontados com os pilotos do passado, que apesar de possuírem números menos vistosos, para muitos não podiam ser rebaixados apenas em virtude disso.

            E estão certos. Cada era e momento da F-1 foi particular, de modo que aqueles grandes campeões do passado foram, em seus respectivos momentos, os melhores da categoria, com virtudes, defeitos, e conquistas a serem consideradas e respeitadas. Mas também não é certo ignorar as estatísticas alcançadas, o que seria desprezar o que cada piloto conquistou durante sua época de competição. É um dado importante, mas que não deve ser considerado absoluto como medição de quem foi o maior de todos. Assim, embora muitos possam relutar em colocar Schumacher como o maior de todos os pilotos que a F-1 já teve, não se podia ignorar a grandiosidade de seus números, mesmo que muitos afirmem até hoje que ele nunca teve concorrência dentro dos times que defendeu, os quais sempre estiveram voltados unicamente para ele, de modo que suas conquistas são “infladas” por esta condição, além claro, do período de hegemonia vivido pela Ferrari entre 2000 e 2004, o que turbinou suas glórias na categoria.

Sete vezes campeão da F-1, e recordista com 91 vitórias, estas marcas por muito tempo foram consideradas inalcansáveis, até agora.

            Lewis Hamilton, no domingo passado, igualou as 91 vitórias alcançadas por Schumacher em toda a sua carreira, e como está ainda em atividade, e em um time vencedor, poderá se tornar o novo recordista isolado caso vença a próxima corrida, na semana que vem, em Portimão, no Algarve, no que seria a sua 92ª vitória, deixando Michael para trás. O inglês está perto também de igualar outro grande feito do alemão, que é o número de títulos na F-1, sete, o que é apenas mera questão de tempo. Com 69 pontos de vantagem na classificação, e com 6 provas pela frente na temporada deste ano, Lewis tem a faca e o queijo na mão, até porque 2020 tem se mostrado outro ano de domínio da equipe Mercedes, o que facilita muito as coisas. E, no ritmo que a escuderia alemã segue, já pensando em como deixar o carro de 2021 pronto, mesmo sendo basicamente o mesmo deste ano, podemos dizer que Hamilton tem chances sérias de conquistar um oitavo título na próxima temporada, estabelecendo um novo recorde ainda mais impressionante do que o obtido por Schumacher, que mesmo tendo sido igualado, ainda é estrondoso.

            E o número de vitórias, então? Todas as seis provas restantes são chances potenciais de Hamilton ampliar seu currículo de vitórias, de modo que em 2021, atingir a marca de 100 triunfos, ou até mais do que isso, não será nada impossível. Conquistar tais marcas, para muitos, contudo, é mais sorte do que mérito de Lewis, por ter à sua disposição, desde 2014, o melhor carro da F-1, de forma a desmerecer o feito obtido pelo até o presente momento hexacampeão. E, curiosamente, não são poucos os que olham apenas para este detalhe, esquecendo-se também que Michael Schumacher teve seu momento de domínio na F-1 de 2000 a 2004, com a Ferrari. Ou o domínio do alemão deve ser menos considerado do que o de Hamilton?

Na estréia, em 2007, pela McLaren, Lewis Hamilton chegou "chegando", como bem sentiu Fernando Alonso, que perdeu o rebolado frente ao atrevido novato do time, que logo chegaria às suas primeiras vitórias ainda naquele ano.

            Aqueles que dizem que o inglês não tem rivais na Mercedes, e por isso ganha com muita facilidade menosprezam a capacidade de Lewis frente a seus parceiros de time. Mas, se é verdade que até o presente momento Valtteri Bottas não se mostrou um rival à altura para o inglês dentro da Mercedes, o que dizer de Schumacher, que durante seu período de hegemonia na F-1, tinha o time da Ferrari todo voltado para si, com seu companheiro de equipe Rubens Barrichello ficando apenas com as sobras? Embora a Mercedes possa ter utilizado as famigeradas “ordens de equipe” em alguns momentos, na comparação com a Ferrari, o time alemão é muito mais liberal, e proporcionou oportunidades reais e válidas de seus pilotos duelarem na pista, ao contrário do que ocorreu no time italiano, onde em 2000, Luca de Montezemolo chegou a dizer com todas as letras que o único objetivo da Ferrari era fazer Schumacher campeão do mundo, e que ninguém deveria esperar que eles deixassem Barrichello sonhar com algo assim. Entre 1991 e 2006, apenas em 1992 o alemão teve que duelar com seu parceiro de equipe, sendo que de 1993 em diante, sempre foi o centro de todas as atenções da escuderia, primeiro na Benetton, e depois na Ferrari, sem que seus colegas de time tivessem as mesmas oportunidades.

            Neste comparativo, Hamilton não teve vida fácil em diversos momentos, precisando bater com muito mais frequência seus companheiros de equipe. Se Bottas até aqui não tem sido páreo para o inglês, que tem pilotado cada vez mais forte e concentrado, por outro lado ele se bateu diretamente com Fernando Alonso, Jenson Button, e Nico Rosberg, e se estes dois últimos podem não ser considerados gênios fora de série, ambos conseguiram ser campeões nas oportunidades que tiveram, sendo que Nico conseguiu derrotar Hamilton dentro da própria Mercedes, o que demonstra como o time deu melhores oportunidades a seu segundo piloto de competir. Barrichello nunca teve chance de fazer o mesmo na Ferrari, e se não era tão talentoso quando Schumacher, é porque a Ferrari nunca lhe deu oportunidade para isso. Esse é um ponto que costuma incendiar as discussões sobre quem foi melhor: Hamilton ou Schumacher, e as conversas vão longe, com muitos argumentos a favor e contra de um ou de outro piloto. A única certeza é que, se Barrichello tivesse oportunidade para dividir curvas com Schumacher, os números de vitórias deste certamente não seriam os mesmos, mas nunca saberemos se, com isso, o brasileiro teria sido campeão em algum momento realmente, a exemplo do que Nico Rosberg conseguiu fazer, mesmo com muitos até afirmando que o alemão só foi campeão por que Hamilton teve um motor quebrado em uma prova daquele ano, 2016. Mas, aconteceu, e nenhum piloto foi campeão da F-1 sem sorte, e isso também inclui Michael Schumacher, bem como Lewis Hamilton.

No GP dos Estados Unidos de 2012, a última vitória pela McLaren. Lewis deixava o time que sempre o apoiou para se aventurar em uma Mercedes ainda buscando sua afirmação na F-1 atual.

            E também temos aqueles que criticam Hamilton, ao afirmar que ele nunca pilotou um carro ruim na F-1. Verdade seja dita, Lewis estreou da melhor maneira possível na categoria, em 2007, já em um time de ponta, e dispondo de um carro capaz de lutar pelo título. Já Schumacher estreou por um time médio, a Jordan, e logo depois foi para uma Benetton que, apesar de andar entre os primeiros, ainda era um time médio tentando alcançar o status de time de ponta, o que foi alcançado de vez em 1994. E, dali em diante, o piloto alemão só voltaria a guiar um carro sem condições de brigar pelo título em 1996 e 2005, além claro, de seus anos de Mercedes de 2010 a 2012. E, em 1994, 1995, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, e 2006, Michael pilotou o melhor, senão um dos melhores carros da categoria. Hamilton, neste aspecto, teve um pouco mais de sorte em termos de equipamento, de modo que sempre guiou carros capazes, ao menos, de vencer corridas, o que conseguiu fazer mesmo em anos de domínio de outros times, como em 2009 (Brawn GP), ou durante os anos de supremacia da Red Bull, entre 2010 e 2013. Mas a diferença a favor do inglês não é tão grande como muitos podem afirmar.

            Uma coincidência na carreira de ambos foi a tomada de decisões que, em primeiro momento, foram consideradas equivocadas por muitos que acompanham o automobilismo, mas que se revelaram apostas extremamente válidas. Ao fim de 1995, bicampeão, em uma equipe Benetton mais forte do que nunca, todos se surpreenderam quando Schumacher anunciou que estava se transferindo para a Ferrari, um time que àquela altura, estava longe de disputar um título, e que só havia vencido dois GPs desde 1991. O time vinha sendo reestruturado por Jean Todt desde 1993, mas estas mudanças só engrenaram de vez com a contratação de um piloto de ponta como Schumacher. Mesmo assim, o trabalho duro desenvolvido pelo alemão, junto a outros profissionais como Rory Byrne e Ross Brawn, só permitiriam chegar à conquista do título em 2000, quatro anos depois de se transferir para o time italiano. Mas os resultados começaram a aparecer já em 1997, quando o piloto alemão disputou o título, perdendo para Jacques Villeneuve, sofrendo nova derrota em 1998, agora para Mika Hakkinem. Poderia ter vindo em 1999, não fosse o acidente em Silverstone que lhe rendeu uma perna quebrada e várias provas de fora. No caso de Lewis Hamilton, foi sua saída da McLaren ao fim de 2012, para ir para a Mercedes, um time que, até aquele momento, muitos não apostavam tanto. Criado pela McLaren, que o apoio desde muito cedo, ainda nos tempos do kart, deixar o time inglês era visto como algo impressionante por todos, que achavam que, pela lealdade a quem sempre esteve ao seu lado, Hamilton ficaria na escuderia de Woking até o fim dos tempos. Não havia também motivos para reclamar, já que a equipe era de ponta, e Lewis vinha vencendo corridas, mesmo diante da hegemonia da Red Bull, que deixava todos comendo sua poeira. Mas Hamilton queria crescer por si próprio, ser dono de seu destino, e sua aposta foi ainda mais certeira do que a de Schumacher, pois com o advento das unidades turbo híbridas a partir de 2014, a Mercedes se tornou a nova força dominante do grid, até os dias atuais, e Lewis foi o grande beneficiado deste período de supremacia do time alemão, que vinha se preparando para isso desde 2010, e com sua contratação em 2013, reuniu todas as peças necessárias para dar o grande salto na competição, a exemplo do que a Ferrari havia feito quando contratou Schumacher em 1996.

            Para alguns, a melhor maneira de avaliar os feitos de um piloto é considerar quem ele enfrentou na pista, seja no próprio time, ou de outras escuderias. Michael Schumacher não teve rivais à altura em talento durante a maior parte de sua carreira (não considerando seu retorno em 2010 a 2012 pela Mercedes). O alemão perdeu sua chance de duelar homem-a-homem pelo título de 1994 com o trágico GP de San Marino, com o falecimento de Ayrton Senna, depois de perder o duelo entre ambos no ano anterior, quando ambos competiram usando motores da Ford nos times de McLaren e Benetton. Em 1996, ele ficou de fora da disputa pelo título por estar em seu primeiro ano de Ferrari, com o time ainda se reorganizando, mas em 1997, perdeu o duelo contra Jacques Villeneuve, um piloto que, apesar de honrar o nome de seu intrépido e arrojado tio, nunca foi considerado um gênio da velocidade como o alemão. No ano seguinte, o título foi de Mika Hakkinen, que apesar de seu bicampeonato, e de ser considerado o piloto que mais deu trabalho a Schumacher (esqueçam Damon Hill, o inglês até deu trabalho, mas nunca foi considerado um piloto campeão de fato por muitos, nem mesmo depois de vencer a temporada de 1996 contra Jacques Villeneuve), também não era do mesmo nível do alemão, embora chegasse perto.

Desde 2017, só dá Lewis Hamilton como campeão na F-1. O inglês deve conquistar o heptacampeonato este ano, seu quarto título consecutivo, e igualar o número de campeonatos vencidos por Michael Schumacher.

            Kimi Raikkonen só deu trabalho mesmo em 2003, e apenas em 2005 e 2006 surgiria um oponente de talento comparável ao de Michael, o espanhol Fernando Alonso, que não por acaso foi bicampeão naqueles dois anos. Mas olhem que Hamilton, já em seu ano de estréia, deixou o já bicampeão espanhol na saia justa quando dividiram a McLaren, então...

            O que dizer dos duelos travados por Ayrton Senna e Alain Prost quando dividiram a McLaren entre 1988 e 1989? Saíram faíscas para todos os lados, com um triunfo para cada um em termos de campeonato, inúmeras vitórias e pole-positions, e nenhum dos dois arredando o pé. Ou os duelos entre Nigel Mansell e Nélson Piquet na Williams entre 1986 e 1987, com o time jogando claramente a favor de Mansell contra Piquet? Lembrando que Mansell também se bateu com Alain Prost e Ayrton Senna, e o brasileiro também encarou seu compatriota Piquet, bem como o inglês. E um pouco antes, Piquet também havia se batido com Niki Lauda, que fora seu mentor em seu primeiro ano na Brabham, além de ter encarado também Prost em diversos momentos. Em tempos onde a discrepância entre certos times era menor, e as corridas eram mais imprevisíveis e mais disputadas, pudemos ver duelos muito mais acirrados entre diversos pilotos. Duelos que hoje são mais escassos, dados os momentos de supremacia de alguns times, como fora o caso de Schumacher na Ferrari entre 2000 e 2004, Sebastian Vettel entre 2010 e 2013 com a Red Bull, e de Hamilton desde 2014 para cá, com o domínio da Mercedes.

            A conquista de Lewis deve ser reconhecida e respeitada. Ele pode vir a ser o maior piloto da F-1, pelo menos em termos estatísticos na maioria dos quesitos. E o gesto de Mick Schumacher, que após a corrida entregou a Lewis uma cópia do capacete de seu pai, como que num gesto de “passando o bastão” do antigo recordista para o novo, reconhecendo seus méritos em alcançar os números estabelecidos pelo piloto alemão, e com as palavras de agradecimento feitas pelo hexacampeão, enaltecendo os feitos de seu antecessor no time da Mercedes, e prestando-lhe o devido respeito, mostram que ele compreende o seu momento, e a sua conquista, sem desmerecer as marcas alcançadas por quem veio antes dele. Ninguém é obrigado a dizer que Hamilton “é o maior da F-1”, porque cada um, à sua maneira, tem o seu próprio “maior piloto”, em muitos casos com justificativas muito plausíveis, mesmo que mais subjetivas do que objetivas.

            Mas Hamilton, assim como Schumacher foi, e outros antes deles, será um dos gigantes da história da categoria máxima do automobilismo, com seus próprios méritos. E isso será algo irrefutável, sem desmerecer as conquistas de outros gênios da velocidade, como Juan Manuel Fangio, Jim Clark, Jack Brabham, Jack Stewart, Émerson Fittipaldi, Graham Hill, Niki Lauda, Nélson Piquet, Ayrton Senna, Alain Prost, entre outros. Todo recorde é uma marca a ser alcançada, e em caso de sucesso por algum piloto, este supera o antigo rei da marca, tornando-se o novo rei. Portanto, rei morto, rei posto, como diz o ditado.

            Saudemos o novo e atual rei, Lewis Hamilton, portanto, e aguardemos o surgimento do próximo, que certamente surgirá um dia, no futuro, se já não estiver à nossa vista. E acompanhemos o desenrolar e a trajetória do próximo gênio da velocidade da F-1. Mas, enquanto não vemos esse novo gênio, ainda teremos a chance de acompanhar o atual por mais algum tempo, e ficam agora as apostas de quais serão as novas marcas que ele alcançará, e deixará registradas nos anais do automobilismo, para que um dia, mesmo que por mais improvável que possa ser, possam ser também igualadas e superadas...

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