sexta-feira, 16 de julho de 2021

TENTATIVA VÁLIDA, OU UMA COMPLETA FURADA?

A corrida de Silverstone experimentará definição do grid através de uma "corrida de classificação" na F-1.

            Hoje começam os treinos para o Grande Prêmio da Grã-Bretanha, em Silverstone, e o fim de semana marcará a primeira experiência de uma nova modalidade de classificação para um grande prêmio de Fórmula 1, chamada de “sprint qualifying”, ou simplesmente, corrida de classificação. Trata-se de uma tentativa por parte da Liberty Media de tentar dar um maior dinamismo às corridas, imaginando oferecer melhores possibilidades de se mexer na composição de forças do grid, de modo que isso possa se refletir em corridas mais disputadas e emocionantes.

            Que a F-1 precisa de mudanças, ninguém discute. A questão é se as mudanças propostas vão na direção certa das necessidades da categoria, ou se serão um tiro no pé, ocasionando resultado contrário ao almejado. E, nesse ponto, essa “corrida de classificação” tem dividido opiniões, tanto a favor como contra. Foram escolhidas três provas para se testar e avaliar essa nova forma de classificação, sendo a corrida de Silverstone a fazer a primeira experiência, que depois será repetida em Monza, na Itália, e, se tudo correr bem, aqui em São Paulo, em Interlagos, se a corrida for mantida no calendário da competição, devido aos problemas decorrentes da pandemia da Covid-19. Não é uma idéia totalmente nova, visto que na segunda metade dos anos 1980 chegou a se cogitar esse tipo de conceito para definição do grid das corridas, mas todo mundo achou a proposta algo completamente maluco e acabou sendo descartada de imediato. E agora, cerca de três décadas e meia mais tarde, resolveram experimentar para ver o que acontece.

            Em primeiro lugar, vamos à nova sistemática dos treinos. Hoje, temos um treino livre, de uma hora, conforme ocorre em todas as manhãs de sextas-feiras de GP no horário local. Mas o segundo treino, realizado à tarde no horário local, passará a ser uma “classificação”, que determinará o grid dessa “corrida de classificação”, que será realizada no sábado à tarde. Neste dia, claro, continuaremos a ter o primeiro treino livre, de uma hora, na parte da manhã do fuso horário local, tal qual o primeiro treino livre de sexta-feira. E, à tarde local, ao invés do treino de classificação tradicional, com seus Q1, Q2, e Q3, entra em ação a nova “corrida de classificação” citada, com extensão de cerca de 100 Km, um terço de um GP normal, com os carros largando conforme o treino “classificatório” da sexta-feira, o qual será feito nos tradicionais esquemas de Q1, Q2, e Q3, com os carros mais lentos ficando de fora após cada bloco. E o resultado da corrida de classificação, por sua vez, determinará as posições de largada do domingo. Resumidamente, é isso aí, com alguns detalhes a serem relatados: os três primeiros colocados da “Sprint Qualifying” ganharão pontos, com o 1º colocado recebendo 3; o 2º ganha 2; e o 3º colocado faturando 1 ponto. Quem “vencer” a corrida de classificação será contabilizado como pole-position da corrida de domingo, de modo que essa “vitória” na “sprint qualifying” não será reconhecida como vitória, algo que será mantido apenas para a corrida de domingo.

            Da mesma forma, a cerimônia do pódio continuará exclusiva da corrida de domingo, como ponto de coroação das atividades do fim de semana. Os três melhores colocados da prova de classificação vão colocar seus carros nas respectivas posições que vão formar no grid de largada no domingo. Um ponto legal, por trazer de volta uma antiga tradição das corridas, é que estes três primeiros colocados vão receber um grande colar de flores, similar às coroas de louros que os vencedores de GPs recebiam antigamente, e que foram banidas porque “tampavam” as marcas dos patrocinadores nos macacões dos pilotos. Após isso, eles seguirão para uma atividade que a Fórmula 1 está chamando de “desfile da vitória”, desfilando ao longo de uma volta completa no circuito, para exibição ao público nas arquibancadas, em formato que ainda está sendo mantido em segredo de como será feito pela organização da categoria. Vale lembrar que teremos casa cheia em Silverstone neste final de semana, com o abrandamento das restrições contra a Covid-19 decorrentes do avanço da vacinação contra o coronavírus em todo o Reino Unido. Os primeiros colocados da corrida de classificação serão aclamados pelo público, em um momento teoricamente único no fim de semana, preparando o palco para o evento principal, o Grande Prêmio.

Mais disputas pelas posições de largada, com mais emoção e imprevisibilidade. Na teoria, vamos ver como será na realidade...

            Mas, será que isso vai ser tão empolgante e emocionante como seus defensores alegam? Desde que a idéia foi aventada, há meses atrás, tem havido muitas discussões a respeito. Para alguns, é uma novidade bem-vinda, para dar algum agito a um formato de competição enrijecido e ultrapassado, e que já não atrai a nova geração de potenciais torcedores do automobilismo. Para outros, é mais uma idéia viajada que a categoria resolve inventar para ver se proporciona mais emoção e disputa, na falta de conseguir bolar algo melhor para resolver os percalços que a F-1 enfrenta nos últimos tempos, de tentar atrair novos fãs e torcedores para seu campeonato.

            De minha parte pessoal, não gosto da idéia. O sistema de classificação atualmente em uso tem lá seus empecilhos, mas o formato dos blocos do Q1, Q2, e Q3, até tem dado conta do recado. Poderia ficar melhor se a FIA tornasse os blocos um pouco maiores, e disponibilizasse mais alguns jogos de pneus para todo mundo sentar a bota e mandar ver, bem como afrouxar algumas regras de substituição de componentes que não permitem aos times dar tudo o que podem como poderiam fazer de fato, limitando um pouco a competição efetiva. E, da mesma forma, o sistema de corrida de classificação também terá seus próprios problemas para solucionar por parte das equipes e pilotos participantes.

            Um dos problemas que podem surgir é o gerenciamento dos pneus do fim de semana. Em um GP “normal”, cada piloto conta com 13 jogos de pneus. Neste final de semana, e nas outras provas que contarem com a corrida de classificação, serão apenas 12 jogos de compostos. Para este final de semana, serão 6 jogos de macios, 4 de médios, e 2 de duros. Na corrida de classificação, um detalhe interessante é que os pilotos não precisarão usar dois tipos de compostos de pneus. Cada piloto terá liberdade de largar com o composto que desejar, e ir com ele até o final da prova. Não haverá necessidade de se efetuar pit stops, a não ser que isso seja absolutamente necessário, como no caso de haver um pneu furado, ou uma degradação absurda do pneu. Mas, como a prova é curta, uma ida ao box pode arruinar completamente as chances de uma boa classificação, já que não haverá tempo hábil em corrida para compensar o que se perde no pit stop. Outro ponto interessante é que, na corrida de domingo, os pilotos poderão largar com o composto que desejarem, o que em tese pode oferecer maiores possibilidades de estratégias para a prova principal.

            Quanto à maior emoção que isso pode proporcionar para a definição do grid de largada do GP, para alguns, as corridas de classificação podem não render o esperado, na verdade podendo ser até extremamente monótonas. Uma das razões, obviamente, é a necessidade de gerenciamento de equipamento. Em tese, por ser curta, no caso de Silverstone, cerca de 17 voltas, poderia ser feita de pé embaixo, da largada à bandeirada, e sem parada de box, sem necessidade de estratégia propriamente dita. Só que os carros serão submetidos ao desgaste de andar a fundo nestas corridas, o que pode gerar desgaste prematuro no equipamento, podendo comprometer seu rendimento na corrida de domingo. Certo, falar que os carros podem se desgastar por causa disso parece um certo exagero, mas é preciso lembrar que atualmente uma série de itens dos carros são extremamente controlados em suas quantidades de utilização na temporada, como por exemplo a limitação de unidades de potência que cada piloto pode usar em todo o ano, sendo que, a cada unidade adicional além do limite, prevê-se punição com perda de posições no grid.

            Na classificação tradicional com Q1, Q2, e Q3, os carros também andam a fundo, mas em poucas voltas essencialmente, sendo as demais voltas de aquecimento, e de retorno ao box, gerando menos desgaste no equipamento. Se levarmos em conta que cada piloto faz em média 2 ou 3 tentativas, cada carro anda a fundo por cerca de 9 voltas nesse formato, sendo as demais voltas a ritmo bem inferior. E a corrida de classificação vai forçar os bólidos a percorrerem mais voltas a fundo. E, se pensarmos que o treino de classificação na sexta passa a ser como o treino de classificação tradicional, a corrida de classificação passa a ser um desgaste adicional aos carros no fim de semana. E será que os times irão com tudo nessa prova de classificação, ou pensarão em como poderão poupar os equipamentos para o domingo, que é onde a disputa é mais importante?

            E disputas acirradas sempre podem ocorrer na pista, e na corrida de classificação certamente não será diferente. Disputas roda a roda sempre podem ocorrer, e existe também a chance de algo dar errado, e resultar em um acidente, que pode gerar ou não consequências. Os pilotos e equipes vão assumir o risco de um acidente nesta prova, que pode até inviabilizar a participação do piloto no domingo? Tudo bem, hoje em dia vemos pilotos por vezes batendo forte na classificação no sábado, e conseguindo largar no domingo, depois de dar muito trabalho aos mecânicos para restaurarem os bólidos danificados, mas em uma corrida, os riscos potenciais de acidentes podem ser maiores do que em um treino convencional de classificação, onde os pilotos sempre procuram tanto quanto possível ficar longe dos outros carros para não serem atrapalhados pelo tráfego. Quando há um acidente em um treino de classificação, raramente isso envolve outro carro além do próprio piloto que se acidenta. Em uma corrida, contudo, uma dividida de curva numa tentativa de ultrapassagem, se algo der errado, pode resultar no abandono dos dois pilotos, e até de mais alguém, que acaso esteja também disputando posição com os outros. Um strike poderia ser danoso não apenas para a posição de largada, como para as possibilidades da prova do domingo. Novamente, pode parecer exagerado o temor, mas não se pode negar a possibilidade disso acontecer, e se os times irão arriscar sofrer tais percalços. Alguns podem se resignar a manter posição que achar cômoda na pista, procurando conservar o carro em melhores condições para o Grande Prêmio. E tem outro detalhe que deve contribuir para os pilotos não irem com tanta sede ao pote como eles esperam: a corrida de classificação também poderá desencadear punições aos pilotos, se estes cometerem infrações comuns de corridas. Acréscimos de tempo, ou perda de posições no grid por troca de equipamento além da cota estabelecida no regulamento, por exemplo. A diferença é que punições por conduta considerada irregular será aplicada na corrida de classificação, se for cometida durante sua realização. Já punições de ordem técnica irão repercutir no GP do domingo, para cumprimento da pena prevista. E a própria corrida de classificação, em caso de algum acidente, pode ver a entrada do Safety Car, neutralizando a competição momentaneamente, e talvez reduzindo ainda mais as disputas, dependendo do incidente que ocorrer.

Acidentes potenciais: times e pilotos vão arriscar mais, ou serem mais conservadores na corrida de qualificação?

            A esperança de quem defende o novo formato é de que a introdução da corrida de classificação promova mudanças de forma a tornar o grid mais imprevisível, e com isso, gerar maior chance de resultados inesperados. Mas, pode ocorrer o contrário. Em várias corridas, o ritmo de carros e pilotos só consegue alterar a ordem de chegada em relação à de largada dependendo da estratégia de cada um, que se vale do tempo e distância percorrida na prova. Com uma corrida mais curta, e em teoria com todos “mandando ver” nos seus equipamentos, quem tem um ritmo mais fraco tenderá a ficar para trás ainda mais rápido, já que à frente ninguém iria aliviar para manter o equipamento como seria em uma corrida longa. Não que o pessoal “alivie” exatamente nas corridas tradicionais, mas a duração das mesmas impõe certa dosagem do uso dos monopostos a ritmo mais forte, no que se convencionou chamar de conservação de equipamento, usado por alguns para tentar atacar no momento certo, enquanto outros rivais estejam com seus carros mais comprometidos, um tipo de procedimento que não será tão fácil de fazer em uma corrida curta. Claro, podem haver de fato surpresas, com alguns pilotos surpreendendo os rivais com manobras agressivas, mas será que conseguirão manter as posições ganhas? Isso não é garantido. Ou pode ocorrer o contrário, com os pilotos caindo para trás e comprometendo expectativas de maiores duelos pelas primeiras colocações. Tudo pode ter um bônus, ou um revés.

            Os treinos livres passarão a ter objetivos diferentes para as equipes. O primeiro treino livre, na manhã de sexta, passará a ser como o treino livre das manhãs de sábado, onde os times e pilotos procuram acertar os carros para a classificação, que irá ocorrer no treino da tarde da própria sexta. Em contrapartida, o segundo treino livre, na manhã de sábado, deverá concentrar as atividades de simulação de corrida para domingo, atividade que costuma ser dividida nos treinos livres da sexta-feira. As escuderias perdem tempo de pista com o novo formato. Atualmente, são três treinos livres de 60 minutos cada, onde eles podem trabalhar da forma que acharem mais conveniente. Com a corrida de classificação, passarão a ser apenas dois treinos de 60 minutos cada, um terço a menos. Em tese, menos chance para se achar um ajuste mais otimizado para os carros, podendo oferecer mais variáveis devido ao menor tempo para se trabalhar, não? Esqueçam! Os times hoje já tem uma quantidade de dados absurda do comportamento de seus bólidos, e com o uso dos simuladores, que ficam cada vez mais sofisticados e eficientes em reproduzir as condições de pista, as chances de ocorrerem surpresas diminuiu consideravelmente. Ou alguém se esquece do GP da Emilia-Romagna do ano passado, que contou com atividades reduzidas, somente no sábado e no domingo, e nem por isso tivemos uma corrida mais interessante... Muito pelo contrário...

            Um ponto interessante é que isso tenta voltar a dar alguma relevância à sexta-feira dos GPs, que tiveram sua importância esvaziada quando no final dos anos 1990 a FIA e a FOM resolveram abolir o treino de classificação das sextas-feiras, como forma de dourar o treino de sábado, que passou a ser único. Até então, eram dois treinos de uma hora cada, com cada piloto largando com a posição alcançada com o seu melhor tempo, que poderia ter sido marcado na sexta, ou no sábado. Valia a melhor marca de cada um. Mas a FIA meio que se doía quando ocorria de chover no treino de sábado, de modo que ninguém ia para a pista, por não ter como melhorar os tempos da sexta, em piso seco. E como as TVs costumavam exibir mais o treino de classificação do sábado, foi uma tentativa de valorizar esse treino. Desde então, os treinos de sexta-feira passaram a servir apenas para os trabalhos dos times e seus pilotos, não tendo importância crucial óbvia para determinar os procedimentos do resto do fim de semana. Agora, vem com essa idéia, procurando remediar o erro cometido. Se vai dar certo, é outros quinhentos.

            Tudo ainda é incerto, e por isso mesmo, está sendo feita essa experiência. Se de fato resultar em mais emoção e disputa, muito provavelmente será implantada a partir do ano que vem. Caso contrário, será mais uma idéia furada que a F-1 tentou imaginar para criar emoção na categoria, e que certamente receberá ainda mais críticas e reclamações por parte dos fãs e torcedores do mundo do esporte a motor. Vejamos se valerá a pena...

 

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