sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O FIM DE UMA ERA NO BRASIL


Transmissão do Grande Prêmio do Brasil de 2019 marcou a despedida de Reginaldo Leme das transmissões de F-1 pela Globo, e o fim da parceria com Galvão Bueno.

            Hoje começam os treinos oficiais para o último GP da temporada 2019 da Fórmula 1. A corrida dos Emirados Árabes Unidos, em Abu Dhabi, não costuma ser das mais atrativas, visto até hoje o belo circuito de Yas Marina nunca ter proporcionado boas corridas, desde que estreou no calendário. O visual da pista, e o panorama do pôr do sol no horizonte, com a noite caindo, proporciona um belo espetáculo da natureza que infelizmente não se reproduz na pista. Mas a transmissão da F-1 neste final de semana marca o fim de uma longa era na TV brasileira. Será a primeira corrida transmitida pela Globo sem a presença “oficial” de Reginaldo Leme, comentarista de longa data na emissora, que anunciou seu desligamento esta semana. Uma ausência que será sentida por muitos.
            Não que Reginaldo não tenha deixado de participar da transmissão de corridas da F-1 durante o período em que trabalhou na emissora do Jardim Botânico. Mas foram ausências pontuais, como a do GP da China deste ano, onde ele não trabalhou por estar doente, internado no hospital. Até então, o seu período de maior ausência foi no início dos anos 1990, em virtude de uma desavença criada por Ayrton Senna em relação à sua pessoa, no que a emissora, não querendo criar celeuma com o ídolo que garantia sua audiência nas corridas, preferiu afastar Leme, que voltaria a trabalhar com a F-1 algum tempo depois. Mas agora é uma ausência definitiva, uma vez que o jornalista foi confirmado pela Globo como não mais pertencente ao seu quadro de profissionais. Com isso, seu lugar na transmissão da prova de Abu Dhabi deverá ficar com Felipe Giaffone, que aliás o substituiu na transmissão da etapa chinesa.
            Trata-se de mais um sinal de desapreço da Globo pelos seus profissionais. No ano passado, a emissora já havia dispensado Lito Cavalcanti, outro profissional de longa data, com mais de vinte anos de casa. E agora, é Reginaldo quem sai, motivado, segundo se comenta, pelas atuais condições de trabalho impostas pela emissora a seus funcionários, sejam eles de qual escalão forem. Independentemente de concordar ou não com tais condições, é uma era que chega ao fim, ao qual todos terão de se acostumar.
            Reginaldo Leme virou sinônimo de F-1 no Brasil, entre os profissionais que trabalham com a categoria máxima do automobilismo na área jornalística, seja de qual meio for, TV, impresso, internet, etc. São praticamente quase cinco décadas de experiência na área, desde as primeiras corridas acompanhadas in loco, em 1972, como enviado especial do jornal “O Estado de São Paulo”, onde trabalhava já havia alguns anos. Reginaldo começava ali uma trajetória que, com alguns intervalos, só terminou esta semana. Reginaldo acompanhou então os grandes feitos de Émerson Fittipaldi, que com seu sucesso, popularizou a F-1 no Brasil. Foi testemunha também do projeto audacioso da única equipe brasileira a competir na categoria, a Copersucar, e viu talentos como os de José Carlos Pace e Nélson Piquet despontarem no certame, entre muitos outros brasileiros que alcançaram a F-1. Com o currículo acumulado trabalhando na cobertura destas corridas, em 1978, “Regi” deixava o “Estadão” para ingressar na TV Globo, na área de esportes. De início, ele ficou um pouco afastado da F-1 em sua nova casa, e em 1980, quando a categoria foi transmitida pela TV Bandeirantes, foi seu único ano de ausência cobrindo a competição.
Em 1983, Reginaldo, na Inglaterra (acima), ao lado de Ayrton Senna, antes de chegar à F-1, e com Galvão Bueno, e Silvio Mota. E entrevistando Frank Williams (abaixo), quando o dirigente ofereceu a Senna seu primeiro teste com um F-1.
            Em 1981, porém, com a Globo retomando os direitos de transmissão, Reginaldo voltaria à F-1 em definitivo, e ganharia aquele que foi seu parceiro de mais longa data, Galvão Bueno, que tinha vindo também da Bandeirantes para engrossar o time de transmissão de corridas da Globo. Uma grande dupla nascia ali, e marcaria época de mais de uma geração de fãs e telespectadores do universo do esporte a motor. Ambos estiveram presentes in loco na grande maioria das corridas dali em diante. Na época, era uma equipe bem pequena, com Galvão sendo o narrador, e Reginaldo trabalhando como repórter, e ao mesmo tempo, explicando lances da corrida para que o expectador pudesse entender. Era uma correria danada, pois por vezes, Reginaldo tinha de deixar a cabine para conferir coisas no paddock e boxes, retornando logo em seguida com informações fresquinhas da prova em andamento. E, com a ascenção de outro piloto brasileiro campeão, Nélson Piquet, o automobilismo andava em alta no Brasil. E não foi surpresa a Globo tentar capitalizar com isso. E aí, surgiu o programa Sinal Verde, apresentado por Leme, que abrilhantaria os dias pré-GP, mostrando sempre um pouco do lugar onde ocorriam as provas, e depois uma sinopse dos acontecimentos na pista no final de semana. Um programa que, anos depois, encolheu bastante, deixando de ser tão atrativo como em seus primórdios, mas sempre contando com a presença firme, profissional e serena de “Regi”, que mostrava sua versatilidade, atuando tão bem como apresentador como quando repórter. Sua voz firme, mas tranquila, e com conhecimento da situação, transmitia aos fãs e demais telespectadores as informações necessárias para se ficar por dentro dos acontecimentos tanto quanto possível.
            E Reginaldo, exatamente por essa competência, não ficava restrito somente às transmissões pela TV feitas pela Globo. Ele também escrevia colunas e textos para várias publicações, como por exemplo a antiga versão da revista Grid/Quatro Rodas, ou assinando textos no anuário “Fórmula 1” do jornalista português Francisco Santos, sempre contando casos interessantes muitas vezes completamente desconhecidos do público. Sim, acompanhar in loco a F-1 por anos a fio tornou Reginaldo uma verdadeira enciclopédia ambulante da categoria, com muitos casos e “causos” pra lá de interessantes. Seu profissionalismo o levou a ganhar a confiança de vários pilotos, entre eles Nélson Piquet, sempre arredio a jornalistas, e até de Alain Prost, que depois de ver os trabalhos apresentados por Leme, sentiu-se mais à vontade para atende-lo nos encontros durante os GPs, entre vários outros profissionais. Uma relação de confiança muitas vezes difícil de ser construída, e por vezes mais difícil ainda de ser mantida. E Reginaldo sabia fazer isso com muita classe, sabendo separar o lado pessoal do profissional. Algo que muitas vezes não era fácil de fazer, como foi no lance do desentendimento com Ayrton Senna, quando o piloto, em seu auge na McLaren, achou que Leme estava denegrindo sua pessoa, o que jamais aconteceu de fato.
            Felizmente, isso não durou muito, mas por algum tempo, era uma situação curiosa, e desagradável. Tanto que, quando foi resolvida, em 1992, a Globo resolveu incrementar suas transmissões, colocando enfim um repórter fixo para acompanhar a equipe de transmissão, que além de narrar e comentar, tinha também que se desdobrar nesta função. Por isso, a partir dali, Reginaldo Leme passou a ser oficialmente comentarista. Até então, embora já comentasse, ele dividia a função com o trabalho de repórter, e isso o levou a trabalhar também com outros esportes, como a Copa do Mundo, e até as Olimpíadas, como integrante da equipe de jornalismo da Globo nestes eventos, por vezes até desfalcando seu trabalho com o automobilismo. E, mesmo nestes esportes, Leme não deixava a bola cair, mostrando versatilidade e conhecimento sobre o que estava cobrindo.
Reginaldo Leme foi um dos poucos jornalistas a conquistar a confiança de Nélson Piquet. Em 1992, ele deu uma entrevista exclusiva após seu acidente nos treinos para as 500 Milhas de Indianápolis, e em 2009, também revelou ao jornalista a trama da batida proposital de seu filho Nelsinho na prova de Cingapura de 2008.
            O início dos anos 1990 também marcou o retorno de Reginaldo como editor de publicações escritas, com a criação do anuário Automotor, em 1992, inspirado pelos grandes anuários que ele conhecia na Europa, e que no Brasil só tínhamos como exemplo o “Fórmula 1”, editado por Francisco Santos, no qual ele colaborou em algumas edições. O sucesso do Automotor pode-se notar pela longevidade da publicação, que este ano teve sua 27ª edição lançada, com mais de 470 páginas, e uma grande miríade de campeonatos relacionados. Tenho a grande maioria, alguns deles devidamente autografados pelo Reginaldo, e guardo todos com muito carinho e cuidado, sendo sempre ótimas leituras de consulta e referência, publicações que andam em falta por estas paragens há muito, muito tempo, com os fãs nacionais tendo ficado praticamente órfãos de revistas especializadas depois que a revista Racing deixou de circular. E não posso me esquecer de sua coluna semanal no Estadão, onde voltou a escrever no início dos anos 1990, e só encerrada há alguns anos, quando o jornal infelizmente resolveu cortar parte dos textos de sua seção de esportes, entre eles o automobilismo, tendo dispensado também os trabalhos de outro profissional extremamente competente, Livio Oricchio, outro que também deixou de acompanhar o automobilismo a serviço da Globo no primeiro semestre deste ano.
            E Reginaldo ainda por cima é um daqueles caras que é difícil não gostar. Educado, paciente, humilde, sóbrio, e acima de tudo, honesto, e ético. Ouvi muita gente até defenestrando ele nos comentários de sua saída, alguns com impropérios que nada fazem juz a Leme tanto quanto pessoa como quanto profissional. E se ele cometeu alguns erros, quem não os comete. Reginaldo ainda mantinha uma sobriedade que nos últimos anos vem faltando muito a seu parceiro de longa data, Galvão Bueno, que muitas vezes não deixa seus colegas de transmissão falarem direito, ou ainda dá sua versão dos acontecimentos, como se sua opinião fosse a mais certa do que as deles. Galvão já foi muito melhor do que é atualmente, e coincidentemente, era o profissional que a grande maioria queria ver aposentado o mais breve possível. E muitos ficaram revoltados ao ver que aconteceu justamente o contrário: o melhor nome da equipe de transmissão é quem saiu. A dupla, que já deixou de estar presente em muitos GPs, devido a outros compromissos profissionais de Galvão narrando outros eventos esportivos na emissora, agora faz parte do passado, e deixará saudade em muita gente, mais pelos bons e velhos tempos, do que pelos anos mais recentes.
Com a publicação do anuário Automotor, mais um sonho profissional realizado.
            Assim como deixaram saudades também os programas do “Linha de Chegada”, apresentados por Reginaldo durante vários anos nos canais do SporTV, e que por motivos até hoje não justificados, foram excluídos da grade de programação. Os tempos atuais, decididamente, são outros, e infelizmente a Globo, ao invés de aprimorar seu produto, o automobilismo, tomou decisões ainda mais questionáveis que certamente não ajudaram a melhorar sua fama entre os fãs da velocidade, como por exemplo, a decisão de deixar de exibir a cerimônia do pódio na transmissão da TV aberta, obrigando os fãs a terem de caçar o site da emissora para ter acesso ao momento.
            A idade, contudo, também começa a pesar. E aos 74 anos, o pique certamente não é o mesmo do início dos anos 1980, e dos anos 1990. Viajar para transmitir in loco as corridas exige uma disposição e logística pessoal que vai cansando ao longo do tempo. Nos últimos anos, por contenção de despesas, mesmo com os contratos de patrocínio da F-1 rendendo sempre altos lucros para a emissora, a Globo deixou de enviar sua equipe de transmissão completa para os locais das provas. Isso já vinha acontecendo há alguns anos, com a Globo economizando de enviar sua equipe para algumas corridas, mas de uns três anos para cá, praticamente não enviou mais narrador e comentaristas para as corridas, enviando apenas um repórter, que ficou a ser variável, dependendo de onde a corrida é realizada, com Mariana Becker a ocupar a função a maior parte do tempo. Só a prova do Brasil, por ser aqui, a Globo fez transmissão in loco. Deixar de ver Leme presente no paddock das corridas já estava dando saudade, pela nova sistemática adotada pela Globo, como se faltasse alguém da família, até então sempre presente na imensa maioria dos momentos. E certamente, Reginaldo tem muitas e boas histórias compartilhadas com todos os profissionais com os quais conviveu todos estes anos, fossem eles do Brasil, ou os inúmeros jornalistas que conheceu mundo afora, que passou a respeitar, assim como eles passaram a também ter o maior respeito e admiração por seu trabalho ao longo dos anos. Foram mais de 500 GPs presente in loco.
            E, por isso mesmo, fica o registro de Reginaldo despedir-se das transmissões da F-1 aqui em Interlagos, onde atuou, ao lado de Galvão Bueno, Luciano Burti, Sérgio Mauricio, e Felipe Giaffone, na equipe de transmissão da prova. Nada como estar presente no paddock, para aquela que acabou sendo sua última participação na transmissão de uma prova da categoria máxima do automobilismo. E, no último final de semana, Reginaldo fez praticamente sua despedida da Globo, ao trabalhar na transmissão da etapa de Goiânia da Stock Car Brasil. E nem ao menos participará das últimas etapas, tanto da F-1 como da Stock Car 2019. Fica uma sensação de trabalho incompleto, mas conhecendo o profissionalismo que sempre caracterizou Leme em suas décadas de trabalho, se ele resolveu sair agora, é porque não dava mesmo para continuar.
            O que ele fará da vida agora cabe unicamente a ele. Trabalhando com o automobilismo por cerca de 47 anos, com raros momentos de pausa, ele tem direito a dar uma boa descansada, depois de todo este tempo. Se quiser encerrar de vez sua carreira, já será algo mais do que merecido. Se resolver continuar, com algum projeto novo, pessoal, ou a serviço de outro grupo, como por exemplo o Fox Sports, onde hoje temos alguns bons profissionais, com certeza será muito mais do que bem-vindo. Por enquanto, o que é certo é que teremos uma nova edição do Automotor no início de 2020, mantendo a tradição de todos estes anos.
            Infelizmente, a Globo perde um grande profissional, que deverá empobrecer ainda mais suas transmissões de automobilismo, sem querer desmerecer os nomes competentes dos que ainda lá trabalham. E perdem os fãs que Reginaldo conseguiu para o automobilismo com sua dedicação e trabalho sério durante todos estes anos. Quem ganha é Reginaldo, agora livre, mais do que nunca, para definir suas próprias prioridades e objetivos. Certamente ainda o veremos em ação, e é o que muitos fãs, dele e do automobilismo, esperam com muita expectativa.


E o grid da F-1 2020 acaba de ser fechado. O canadense Nicholas Latifi acaba de ser anunciado para ser o companheiro do inglês George Russel na equipe Williams no próximo ano, ocupando o lugar do polonês Robert Kubica, que não estará mais no grid. Era a única vaga disponível, e Latifi, apesar de suas reservas diante da péssima temporada vivida pela escuderia este ano, acabou pegando a vaga. Para o time de Grove, um grande alívio, pois o canadense trará um aporte financeiro de sua família considerado até mais vultoso do que o proporcionado por Lance Stroll quando este correu pelo time até o ano passado. E as finanças da escuderia andam bem combalidas, e um reforço financeiro é imprescindível para que o time tente ao menos reencontrar o seu rumo na próxima temporada, ocupando no momento a lanterna do grid da F-1, situação vexatória para um time que já foi uma das maiores escuderias da categoria nos anos 1080 e 1990. Pela sua história e tradição, espero que a Williams consiga se reerguer, a exemplo do que a McLaren vem fazendo. Fica a dúvida se conseguirão...

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