sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O OCASO DE LORENZO

Após o pior ano de sua carreira nas pistas, Jorge Lorenzo resolveu pendurar o capacete.

            O campeonato 2019 da MotoGP chegou ao fim, domingo passado, com a realização da última etapa da competição, no Circuito Ricardo Tormo, em Valência, e o resultado, foi o que se tornou banal no ano, com mais uma vitória de Marc Márquez, que conquistou o hexacampeonato na classe rainha do motociclismo, vencendo nada menos do que 12 provas este ano, de um total de 19 etapas, o que demonstra que, na prática, ele correu sozinho. O domínio da “Formiga Atômica” foi tão contundente que ele terminou o ano com nada menos do que 151 pontos de vantagem para Andrea Dovizioso, da Ducati, que pelo terceiro ano consecutivo foi vice-campeão da categoria.
            Mas o principal assunto no paddock de Valência acabou sendo outro: a aposentadoria de Jorge Lorenzo, após o que pode ser considerado o pior ano de sua carreira de piloto profissional. E Lorenzo não foi um piloto qualquer, mas um tricampeão, que foi vencedor das temporadas de 2010, 2012, e 2015. Jorge iniciou sua carreira em 2002, competindo na categoria 125cc, onde obteve resultados até medianos. Em 2005, passou para as 250cc, conquistando o bicampeonato neste certame nas temporadas de 2006 e 2007. E, assim, com as devidas credenciais, ele estreava na classe principal do motociclismo mundial, a MotoGP, e logo em um time de fábrica, a Yamaha.
            Jorge mostrou a que veio, terminando seu primeiro campeonato em 4º lugar, obtendo sua primeira vitória na classe rainha em Portugual. A seu lado, na equipe, Valentino Rossi, o “Doutor”, que conquistava ali seu 6º título. Não estava de mal tamanho para um novato. No ano seguinte, ele começou a mostrar as garras, e incomodou Rossi na disputa pelo título, que ficou novamente com o italiano de Tavulia, mas com Lorenzo conquistando o vice-campeonato, com 4 vitórias, contra 6 de Valentino. E não era blefe: em 2010, Lorenzo conquistou o título, e a despeito de Rossi, seu companheiro de equipe, ter perdido 4 etapas no ano por problemas e um acidente, o espanhol teve muitos méritos na conquista de seu primeiro campeonato, onde venceu 9 provas e foi dominante.
            Tão dominante que Rossi preferiu sair, aceitando o desafio de levar a rival Ducati de volta ao título. Sem o italiano dividindo o box, Lorenzo reinou na Yamaha, mas em 2011, acabou sendo derrotado por Casey Stoner, da Honda, que deixou a Jorge a compensação de ser vice-campeão. Mas o espanhol voltaria com tudo em 2012, e conquistaria o seu bicampeonato, onde teve como maior rival o compatriota Dani Pedrosa, da Honda, que deu luta a Lorenzo, que venceu a parada por uma diferença de 18 pontos, e tendo uma vitória a menos que o rival. Em cinco temporadas, dois títulos, e dois vice-campeonatos. A carreira do espanhol tinha tudo para ser tão ou talvez mais brilhante do que a Rossi. O “Doutor”, por sinal, teve dois anos abaixo da expectativa na Ducati, e voltaria à Yamaha em 2013, onde Lorenzo já reinava com sobras, e podia se dar ao luxo de encarar qualquer um, dentro ou fora da equipe.
Tentativa de redenção na Honda (acima) acabou se tornando um fracasso retumbante. E as várias quedas que sofreu, como em Assen, na Holanda (abaixo), seu pior acidente no ano, minaram sua confiança e sua capacidade física.
            Mas aí, veio o furacão Marc Márquez, e o protagonismo da categoria mudou rapidamente de mãos, com o novato espanhol na equipe oficial da Honda chegando e arrebentando, literalmente, a concorrência. Jorge não se intimidou com o garoto sensação, mas acabou derrotado por ele numa temporada épica, onde apesar de ter vencido 8 corridas contra 6 do rival compatriota, acabou ficando com o vice-campeonato, pela diferença de apenas 4 pontos. Mas se Márquez arrasou em sua temporada de estréia, seria ainda mais devastador em seu segundo ano, onde massacrou a concorrência ainda mais facilmente, com 13 vitórias. Valentino Rossi, já de volta à velha forma, até tentou, mas só conseguiu ser vice-campeão, enquanto Lorenzo foi o 3º colocado. Os espanhóis tinham um novo ídolo, Márquez. Quem era Lorenzo, afinal?
            Bem, ele tratou de lembra-los em 2015, onde Márquez abusou tanto que a dupla da Yamaha o deixou para trás nas corridas. E Jorge, com 7 vitórias, dominaria o ano, mas havia um Valentino Rossi no meio do caminho, e o “Doutor” deu trabalho, perdendo o título para o companheiro de equipe por apenas 5 pontos. Quem achava que o italiano não dava mais caldo, devia pôr as barbas de molho. E o renascimento de Rossi no time complicava a situação de Lorenzo. Mais carismático e sociável, enquanto Lorenzo era mais fechado, e por tabela, um pouco mais marrento, não demorou para começar a se desentender com Rossi e com o time, em virtude das disputas pelas vitórias. A situação complicou em 2016, onde Marc Márquez voltou a dar as cartas, e com Valentino Rossi voltando a ditar os rumos na Yamaha. O “Doutor” foi novamente vice-campeão, o seu terceiro consecutivo em 3 anos, e com a convivência com Lorenzo se deteriorando cada vez mais, o espanhol resolveu sair, indo para a Ducati, onde aceitaria o desafio de levar o time de Borgo Panigale de volta ao título mundial. Como que para mostrar que seu talento era inquestionável, venceu sua prova de despedida do time dos três diapasões, em Valência, lembrando a todos que ele era um tricampeão mundial, e que haveriam de respeitar isso.
            E ele fez uma excelente escolha. A Ducati teve um equipamento excelente em 2017, tendo sido eleita a melhor moto do grid. Mas o que poderia ter sido um sonho se tornou um pesadelo. Lorenzo simplesmente não se adaptou ao comportamento da moto, que tinha reações diferentes das motos que pilotava quando defendia a Yamaha. Enquanto Andrea Dovizioso, “prata da casa” da Ducati, e considerado um piloto apenas mediano, lutava pelo título quase no mano a mano com Marc Márquez, Lorenzo, um tricampeão mundial, lutava para tentar chegar ao pódio, o que aconteceu muito pouco naquele ano. Dovizioso foi vice-campeão, enquanto Jorge terminou o ano apenas em 7º lugar, com pouco mais que a metade dos pontos do companheiro de equipe. Um abalo inesperado no seu currículo de piloto campeão e vencedor: era sua primeira temporada na classe rainha sem uma vitória sequer, e pior, não podia dizer que não tinha um equipamento competitivo, como mostrou Dovizioso, ao vencer 6 provas na temporada. Um ponto fraco do espanhol, ao não se adaptar à nova moto, teria sido perigosamente exposto?
Em 2015 (acima), a conquista do tricampeonato pela Yamaha, seu último grande momento na classe rainha do motociclismo. Em Portugual, em 2008 (abaixo), sua primeira vitória na categoria, pela mesma equipe, onde se digladiaria várias vezes com Valentino Rossi.
            Se tempo era o que Jorge precisava para virar o jogo, ele teve, mas 2018 começou quase da mesma maneira, com Dovizioso a lutar pelas primeiras posições enquanto o espanhol continuava brigando com o comportamento da Desmosédici. O clima no time já não andava bom desde a decisão do título do ano anterior, onde Lorenzo, ao invés de ajudar Dovizioso na luta contra Marc Márquez em Valência, pelo título, só acabou atrapalhando o companheiro de equipe, o que deixou o ambiente nos boxes pesado pela falta de espírito de equipe demonstrado pelo espanhol. As críticas não demoraram a aparecer, e, com algumas corridas, já se questionava se seu contrato com a Ducati seria renovado ou não. A equipe italiana cobrava resultados, e uma renovação de contrato ainda era válida, mas com Jorge ganhando muito menos do que recebia até então. E não é preciso dizer que sua competência e talento como piloto de ponta estavam sendo mais questionados ainda. E olhe que a Ducati, ainda mostrando sua aposta no piloto, fizeram várias mudanças para deixar o comportamento de sua moto mais agradável ao estilo de pilotagem de Jorge, que cobrava melhorias neste sentido com afinco.
            E estas modificações surtiram efeito, e Lorenzo finalmente pode desencantar na Ducati, ao vencer a etapa de Mugello, fazendo uma dobradinha com Dovizioso que encheu de alegria a torcida italiana. Mas o que deveria ser o recomeço de Jorge no time italiano na verdade acabou sendo o começo de seu fim. Impaciente e orgulhoso, ele resolveu não esperar por uma resposta da Ducati quanto à renovação de seu contrato, no que teria que receber menos do que ganhava. Decidido a não deixar que os italianos ditassem seu destino, ele surpreendeu a todos logo após a vitória ao comunicar que defenderia o time oficial da Honda em 2019, sendo o novo companheiro de Marc Márquez. Nem é preciso dizer que isso pegou mal no time, que apesar das críticas dirigidas ao piloto, ainda apostava nele para defende-los no ano seguinte, como mostravam os esforços da Ducati para deixar a moto mais condizente com o estilo de condução do espanhol.
            Foi uma precipitação por parte do piloto, porque logo a seguir ele conseguiu sua segunda vitória, em Barcelona, e àquela altura o campeonato, estava praticamente quase empatado com seu companheiro Dovizioso. O momento que a Ducati esperava chegar estava se concretizando, com sua dupla de pilotos sendo nomes para a luta pelo título, com ambos vencendo corridas e mostrando a força da Desmosédici. Tivesse esperado, e Jorge certamente teria os trunfos que desejava para renovar com o time italiano da forma que ele desejava, como um vencedor e candidato ao título. Mas como diz o ditado, apressado come cru, e as críticas da Ducati aos seus resultados, pífios até a vitória na Itália, não eram assim tão exageradas. Eles sabiam ter um equipamento competitivo, mas do que adiantava de apenas um dos pilotos conseguia mostrar resultados. Lorenzo certamente não gostou de se ver criticado daquela maneira, e infelizmente, o seu ego, bem ao estilo de outro piloto igualmente talentoso, mas também duro de se lidar, Fernando Alonso, seu compatriota, bicampeão mundial de F-1, e conhecido por ser desagregador nos times por onde passou, ajudaram a minar sua posição na escuderia, que ainda estava disposta a mantê-lo.
Na Ducati, sofreu para se adaptar à moto e não teve paciência para definir seu futuro.
            E, para Jorge, a partir dali tudo começou a desandar. Ele ainda subiria ao pódio na etapa de Brno, na República Tcheca, tendo duelado pela vitória com Dovizioso, e voltaria a vencer, na Áustria, onde a Ducati andava forte, mas foi só. Lorenzo sofreu um tombo na largada em Aragão, e depois, um acidente feio na Tailândia o deixou de fora de algumas corridas, voltando apenas em Valência, onde terminou em um mediano 12º lugar, numa despedida melancólica da Ducati, que àquela altura já se dava por satisfeita por se livrar do espanhol. A aposta de Lorenzo era mais do que ousada, afinal, iria ser companheiro de time de Marc Márquez, que vinha dominando a categoria desde sua estréia, já tendo até então, 5 títulos no currículo. Medir forças com ele era mostrar confiança no seu taco, e mostrar a dimensão de seu talento. E a Honda, um time de fábrica, que vinha ganhando tudo com a “Formiga Atômica”, metia ainda mais medo pelo que poderia ganhar com a adição de Lorenzo, um piloto campeão, em substituição a Dani Pedrosa, cada vez mais apagado na escuderia japonesa, em contraponto ao sucesso acachampante de Márquez. Em teoria, não havia como não temer o poderio da Honda para 2019, com uma dupla tão forte.
            Mas aí, tudo também começou a dar errado para Lorenzo, que voltou a sofrer um acidente, já complicando o que havia sofrido na Tailândia, precisando passar por nova cirurgia, que lhe tirou de parte a pré-temporada. Isso infelizmente minou parte de sua capacidade de recuperação, e quando teve finalmente como testar com sua nova moto, ela simplesmente... Não se adequava a seu estilo, tal como a Ducati. Começava ali um pesadelo que seria até pior do que o vivido no time italiano, a ponto de o espanhol meio que se arrepender do modo como deixou a Ducati, segundo alguns. Com uma moto arisca, mas que Márquez conseguia domar à perfeição, Jorge se tornava a grande decepção da temporada. Enquanto seu companheiro lutava por vitórias, Lorenzo se debatia a meio do grid, sem conseguir avançar às primeiras colocações. Ninguém, em sã consciência, poderia esperar uma performance tão disparatada entre os dois pilotos. Muitos esperavam até uma briga renhida entre ambos, que na melhor das hipóteses, poderia até favorecer os concorrentes, mas qual nada. E, tal como na Ducati, a Honda começou a ver o que poderia fazer para tornar a moto mais “confiável” e “previsível”, de acordo com as críticas de Jorge a respeito de seu comportamento. Lorenzo chegou até mesmo a viajar para a fábrica da Honda no Japão, a fim de ajudar no desenvolvimento das mudanças. Infelizmente, os resultados não surtiram os efeitos esperados, e Lorenzo continuou levando um baile, não apenas de Márquez, mas até dos outros pilotos de meio de grid, que aproveitaram para tirar sua lasquinha do tricampeão.
            Um forte acidente na Holanda, entretanto, complicou a situação ainda mais, exigindo nova cirurgia, e um bom período de recuperação. Se Lorenzo já não se sentia à vontade na moto japonesa, perdeu ali o pouco de conforto e confiança que ainda tinha no equipamento. Poderia muito bem ter encerrado o ano ali, se concentrado em recuperar-se, e voltar somente em 2020. Para muitos, seu retorno, a partir da etapa da Grã-bretanha, foi um erro, pois Jorge não estava plenamente recuperado, e com uma moto instável aos seus olhos, ele não tinha como pilotá-la no limite, como era necessário para obter os resultados à altura do que Marc Márquez vinha demonstrando.
            E não demoraram para vir as críticas, fofocas, e todo tipo de conversas a respeito de Lorenzo, a grande maioria com adjetivos pouco elogiáveis. Até Carmelo Ezpeleta, CEO da Dorna, empresa que controla a MotoGP, chegou a dar um “ultimato” ao piloto, que diante de performances tão negativas, e aos problemas físicos sofridos, precisa decidir se continuaria pilotando, ou se tentaria se recuperar direito, ou se aposentaria do esporte. Lorenzo virou um piloto de passado respeitável, mas de presente altamente duvidoso. É fácil para alguém de fora criticar assim a falta de resultados e performance pífia, mas em se tratando de competição de motos, não ter confiança nas reações do equipamento em determinado momento, ou no nível necessário para se conseguir resultados é um problema que não deve ser subestimado.
A estréia em 2002, nas 125cc. O início de uma carreira que só decolaria mesmo nas 250cc.
            Pilotar uma moto é diferente de um carro, que oferece muito mais proteção, em caso de um acidente forte. Mas numa moto, o piloto fica muito mais exposto em um acidente, e muitas vezes, não dá para contar com a sorte numa hora destas. Uma posição errada ou no segundo errado, pode ter consequências gravíssimas. Jorge já havia tido seis tombos até o acidente em Assen, o mais grave da temporada, quando tentava levar a moto mais ao limite. As sequelas do tombo na Holanda podiam ter sido muito mais graves, e seu período de recuperação, para alguns, foi insuficiente, se não apenas físico, mas também mental. Uma pausa teria sido muito mais útil a Jorge, para retornar apenas no ano que vem, do que voltar à pista este ano, e mostrar desempenhos que nem de longe lembram os bons tempos de Lorenzo.
            O que deveria ser a temporada de “redenção” do espanhol, acabou virando o ano de seu ocaso, culminando com o anúncio de sua aposentadoria como piloto, pelo menos titular, da MotoGP, aos 32 anos, quando ainda teria, em tese, mais alguns anos de competições pela frente. Foram 203 corridas na classe rainha, com 47 vitórias, 43 pole-positions, 114 pódios, 3 títulos mundiais, três vice-campeonatos, e 30 voltas mais rápidas. Some-se a isso mais 94 corridas nas classes 125cc e 250cc, com dois títulos nesta última, com 21 vitórias, 26 poles, 38 pódios, e 7 voltas mais rápidas. Um currículo nada desprezível, e que confere a Lorenzo sua posição como um dos gigantes da história da MotoGP. Só ele pode responder a si mesmo se está tomando a decisão correta, mas é sua vida, sua saúde, e suas prioridades, e tem todo o direito de se retirar, dadas as dificuldades enfrentadas neste ano. Uma pena deixar a carreira depois de um ano tão conturbado e tão abaixo das expectativas. Ele merecia mais, mas infelizmente, nem sempre podemos fazer as coisas na vida como queremos. Que Lorenzo siga agora com seus novos projetos de vida, e seja lembrado pelas conquistas que teve nas duas rodas, e ao menos se respeite sua decisão.

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