Após o pior ano de sua carreira nas pistas, Jorge Lorenzo resolveu pendurar o capacete. |
O campeonato 2019 da
MotoGP chegou ao fim, domingo passado, com a realização da última etapa da
competição, no Circuito Ricardo Tormo, em Valência, e o resultado, foi o que se
tornou banal no ano, com mais uma vitória de Marc Márquez, que conquistou o
hexacampeonato na classe rainha do motociclismo, vencendo nada menos do que 12
provas este ano, de um total de 19 etapas, o que demonstra que, na prática, ele
correu sozinho. O domínio da “Formiga Atômica” foi tão contundente que ele
terminou o ano com nada menos do que 151 pontos de vantagem para Andrea
Dovizioso, da Ducati, que pelo terceiro ano consecutivo foi vice-campeão da
categoria.
Mas o principal
assunto no paddock de Valência acabou sendo outro: a aposentadoria de Jorge
Lorenzo, após o que pode ser considerado o pior ano de sua carreira de piloto
profissional. E Lorenzo não foi um piloto qualquer, mas um tricampeão, que foi
vencedor das temporadas de 2010, 2012, e 2015. Jorge iniciou sua carreira em
2002, competindo na categoria 125cc, onde obteve resultados até medianos. Em
2005, passou para as 250cc, conquistando o bicampeonato neste certame nas temporadas
de 2006 e 2007. E, assim, com as devidas credenciais, ele estreava na classe
principal do motociclismo mundial, a MotoGP, e logo em um time de fábrica, a
Yamaha.
Jorge mostrou a que veio,
terminando seu primeiro campeonato em 4º lugar, obtendo sua primeira vitória na
classe rainha em Portugual. A seu lado, na equipe, Valentino Rossi, o “Doutor”,
que conquistava ali seu 6º título. Não estava de mal tamanho para um novato. No
ano seguinte, ele começou a mostrar as garras, e incomodou Rossi na disputa
pelo título, que ficou novamente com o italiano de Tavulia, mas com Lorenzo
conquistando o vice-campeonato, com 4 vitórias, contra 6 de Valentino. E não
era blefe: em 2010, Lorenzo conquistou o título, e a despeito de Rossi, seu
companheiro de equipe, ter perdido 4 etapas no ano por problemas e um acidente,
o espanhol teve muitos méritos na conquista de seu primeiro campeonato, onde
venceu 9 provas e foi dominante.
Tão dominante que
Rossi preferiu sair, aceitando o desafio de levar a rival Ducati de volta ao
título. Sem o italiano dividindo o box, Lorenzo reinou na Yamaha, mas em 2011,
acabou sendo derrotado por Casey Stoner, da Honda, que deixou a Jorge a
compensação de ser vice-campeão. Mas o espanhol voltaria com tudo em 2012, e
conquistaria o seu bicampeonato, onde teve como maior rival o compatriota Dani
Pedrosa, da Honda, que deu luta a Lorenzo, que venceu a parada por uma diferença
de 18 pontos, e tendo uma vitória a menos que o rival. Em cinco temporadas,
dois títulos, e dois vice-campeonatos. A carreira do espanhol tinha tudo para
ser tão ou talvez mais brilhante do que a Rossi. O “Doutor”, por sinal, teve
dois anos abaixo da expectativa na Ducati, e voltaria à Yamaha em 2013, onde
Lorenzo já reinava com sobras, e podia se dar ao luxo de encarar qualquer um,
dentro ou fora da equipe.
Mas aí, veio o furacão
Marc Márquez, e o protagonismo da categoria mudou rapidamente de mãos, com o
novato espanhol na equipe oficial da Honda chegando e arrebentando,
literalmente, a concorrência. Jorge não se intimidou com o garoto sensação, mas
acabou derrotado por ele numa temporada épica, onde apesar de ter vencido 8 corridas
contra 6 do rival compatriota, acabou ficando com o vice-campeonato, pela
diferença de apenas 4 pontos. Mas se Márquez arrasou em sua temporada de
estréia, seria ainda mais devastador em seu segundo ano, onde massacrou a
concorrência ainda mais facilmente, com 13 vitórias. Valentino Rossi, já de
volta à velha forma, até tentou, mas só conseguiu ser vice-campeão, enquanto
Lorenzo foi o 3º colocado. Os espanhóis tinham um novo ídolo, Márquez. Quem era
Lorenzo, afinal?
Bem, ele tratou de lembra-los
em 2015, onde Márquez abusou tanto que a dupla da Yamaha o deixou para trás nas
corridas. E Jorge, com 7 vitórias, dominaria o ano, mas havia um Valentino
Rossi no meio do caminho, e o “Doutor” deu trabalho, perdendo o título para o
companheiro de equipe por apenas 5 pontos. Quem achava que o italiano não dava
mais caldo, devia pôr as barbas de molho. E o renascimento de Rossi no time
complicava a situação de Lorenzo. Mais carismático e sociável, enquanto Lorenzo
era mais fechado, e por tabela, um pouco mais marrento, não demorou para
começar a se desentender com Rossi e com o time, em virtude das disputas pelas
vitórias. A situação complicou em 2016, onde Marc Márquez voltou a dar as
cartas, e com Valentino Rossi voltando a ditar os rumos na Yamaha. O “Doutor”
foi novamente vice-campeão, o seu terceiro consecutivo em 3 anos, e com a
convivência com Lorenzo se deteriorando cada vez mais, o espanhol resolveu
sair, indo para a Ducati, onde aceitaria o desafio de levar o time de Borgo
Panigale de volta ao título mundial. Como que para mostrar que seu talento era
inquestionável, venceu sua prova de despedida do time dos três diapasões, em
Valência, lembrando a todos que ele era um tricampeão mundial, e que haveriam
de respeitar isso.
E ele fez uma
excelente escolha. A Ducati teve um equipamento excelente em 2017, tendo sido
eleita a melhor moto do grid. Mas o que poderia ter sido um sonho se tornou um
pesadelo. Lorenzo simplesmente não se adaptou ao comportamento da moto, que
tinha reações diferentes das motos que pilotava quando defendia a Yamaha.
Enquanto Andrea Dovizioso, “prata da casa” da Ducati, e considerado um piloto
apenas mediano, lutava pelo título quase no mano a mano com Marc Márquez,
Lorenzo, um tricampeão mundial, lutava para tentar chegar ao pódio, o que
aconteceu muito pouco naquele ano. Dovizioso foi vice-campeão, enquanto Jorge
terminou o ano apenas em 7º lugar, com pouco mais que a metade dos pontos do
companheiro de equipe. Um abalo inesperado no seu currículo de piloto campeão e
vencedor: era sua primeira temporada na classe rainha sem uma vitória sequer, e
pior, não podia dizer que não tinha um equipamento competitivo, como mostrou
Dovizioso, ao vencer 6 provas na temporada. Um ponto fraco do espanhol, ao não
se adaptar à nova moto, teria sido perigosamente exposto?
Se tempo era o que
Jorge precisava para virar o jogo, ele teve, mas 2018 começou quase da mesma maneira,
com Dovizioso a lutar pelas primeiras posições enquanto o espanhol continuava
brigando com o comportamento da Desmosédici. O clima no time já não andava bom
desde a decisão do título do ano anterior, onde Lorenzo, ao invés de ajudar
Dovizioso na luta contra Marc Márquez em Valência, pelo título, só acabou
atrapalhando o companheiro de equipe, o que deixou o ambiente nos boxes pesado
pela falta de espírito de equipe demonstrado pelo espanhol. As críticas não
demoraram a aparecer, e, com algumas corridas, já se questionava se seu
contrato com a Ducati seria renovado ou não. A equipe italiana cobrava
resultados, e uma renovação de contrato ainda era válida, mas com Jorge
ganhando muito menos do que recebia até então. E não é preciso dizer que sua
competência e talento como piloto de ponta estavam sendo mais questionados
ainda. E olhe que a Ducati, ainda mostrando sua aposta no piloto, fizeram
várias mudanças para deixar o comportamento de sua moto mais agradável ao
estilo de pilotagem de Jorge, que cobrava melhorias neste sentido com afinco.
E estas modificações
surtiram efeito, e Lorenzo finalmente pode desencantar na Ducati, ao vencer a
etapa de Mugello, fazendo uma dobradinha com Dovizioso que encheu de alegria a
torcida italiana. Mas o que deveria ser o recomeço de Jorge no time italiano na
verdade acabou sendo o começo de seu fim. Impaciente e orgulhoso, ele resolveu
não esperar por uma resposta da Ducati quanto à renovação de seu contrato, no
que teria que receber menos do que ganhava. Decidido a não deixar que os
italianos ditassem seu destino, ele surpreendeu a todos logo após a vitória ao
comunicar que defenderia o time oficial da Honda em 2019, sendo o novo
companheiro de Marc Márquez. Nem é preciso dizer que isso pegou mal no time,
que apesar das críticas dirigidas ao piloto, ainda apostava nele para defende-los
no ano seguinte, como mostravam os esforços da Ducati para deixar a moto mais
condizente com o estilo de condução do espanhol.
Foi uma precipitação
por parte do piloto, porque logo a seguir ele conseguiu sua segunda vitória, em
Barcelona, e àquela altura o campeonato, estava praticamente quase empatado com
seu companheiro Dovizioso. O momento que a Ducati esperava chegar estava se
concretizando, com sua dupla de pilotos sendo nomes para a luta pelo título,
com ambos vencendo corridas e mostrando a força da Desmosédici. Tivesse
esperado, e Jorge certamente teria os trunfos que desejava para renovar com o
time italiano da forma que ele desejava, como um vencedor e candidato ao
título. Mas como diz o ditado, apressado come cru, e as críticas da Ducati aos
seus resultados, pífios até a vitória na Itália, não eram assim tão exageradas.
Eles sabiam ter um equipamento competitivo, mas do que adiantava de apenas um
dos pilotos conseguia mostrar resultados. Lorenzo certamente não gostou de se
ver criticado daquela maneira, e infelizmente, o seu ego, bem ao estilo de outro
piloto igualmente talentoso, mas também duro de se lidar, Fernando Alonso, seu
compatriota, bicampeão mundial de F-1, e conhecido por ser desagregador nos
times por onde passou, ajudaram a minar sua posição na escuderia, que ainda
estava disposta a mantê-lo.
Na Ducati, sofreu para se adaptar à moto e não teve paciência para definir seu futuro. |
E, para Jorge, a
partir dali tudo começou a desandar. Ele ainda subiria ao pódio na etapa de
Brno, na República Tcheca, tendo duelado pela vitória com Dovizioso, e voltaria
a vencer, na Áustria, onde a Ducati andava forte, mas foi só. Lorenzo sofreu um
tombo na largada em Aragão, e depois, um acidente feio na Tailândia o deixou de
fora de algumas corridas, voltando apenas em Valência, onde terminou em um mediano
12º lugar, numa despedida melancólica da Ducati, que àquela altura já se dava
por satisfeita por se livrar do espanhol. A aposta de Lorenzo era mais do que
ousada, afinal, iria ser companheiro de time de Marc Márquez, que vinha
dominando a categoria desde sua estréia, já tendo até então, 5 títulos no
currículo. Medir forças com ele era mostrar confiança no seu taco, e mostrar a
dimensão de seu talento. E a Honda, um time de fábrica, que vinha ganhando tudo
com a “Formiga Atômica”, metia ainda mais medo pelo que poderia ganhar com a
adição de Lorenzo, um piloto campeão, em substituição a Dani Pedrosa, cada vez
mais apagado na escuderia japonesa, em contraponto ao sucesso acachampante de
Márquez. Em teoria, não havia como não temer o poderio da Honda para 2019, com
uma dupla tão forte.
Mas aí, tudo também
começou a dar errado para Lorenzo, que voltou a sofrer um acidente, já
complicando o que havia sofrido na Tailândia, precisando passar por nova
cirurgia, que lhe tirou de parte a pré-temporada. Isso infelizmente minou parte
de sua capacidade de recuperação, e quando teve finalmente como testar com sua
nova moto, ela simplesmente... Não se adequava a seu estilo, tal como a Ducati.
Começava ali um pesadelo que seria até pior do que o vivido no time italiano, a
ponto de o espanhol meio que se arrepender do modo como deixou a Ducati,
segundo alguns. Com uma moto arisca, mas que Márquez conseguia domar à
perfeição, Jorge se tornava a grande decepção da temporada. Enquanto seu
companheiro lutava por vitórias, Lorenzo se debatia a meio do grid, sem
conseguir avançar às primeiras colocações. Ninguém, em sã consciência, poderia
esperar uma performance tão disparatada entre os dois pilotos. Muitos esperavam
até uma briga renhida entre ambos, que na melhor das hipóteses, poderia até
favorecer os concorrentes, mas qual nada. E, tal como na Ducati, a Honda
começou a ver o que poderia fazer para tornar a moto mais “confiável” e “previsível”,
de acordo com as críticas de Jorge a respeito de seu comportamento. Lorenzo
chegou até mesmo a viajar para a fábrica da Honda no Japão, a fim de ajudar no
desenvolvimento das mudanças. Infelizmente, os resultados não surtiram os
efeitos esperados, e Lorenzo continuou levando um baile, não apenas de Márquez,
mas até dos outros pilotos de meio de grid, que aproveitaram para tirar sua
lasquinha do tricampeão.
Um forte acidente na
Holanda, entretanto, complicou a situação ainda mais, exigindo nova cirurgia, e
um bom período de recuperação. Se Lorenzo já não se sentia à vontade na moto
japonesa, perdeu ali o pouco de conforto e confiança que ainda tinha no
equipamento. Poderia muito bem ter encerrado o ano ali, se concentrado em
recuperar-se, e voltar somente em 2020. Para muitos, seu retorno, a partir da
etapa da Grã-bretanha, foi um erro, pois Jorge não estava plenamente recuperado,
e com uma moto instável aos seus olhos, ele não tinha como pilotá-la no limite,
como era necessário para obter os resultados à altura do que Marc Márquez vinha
demonstrando.
E não demoraram para
vir as críticas, fofocas, e todo tipo de conversas a respeito de Lorenzo, a
grande maioria com adjetivos pouco elogiáveis. Até Carmelo Ezpeleta, CEO da
Dorna, empresa que controla a MotoGP, chegou a dar um “ultimato” ao piloto, que
diante de performances tão negativas, e aos problemas físicos sofridos, precisa
decidir se continuaria pilotando, ou se tentaria se recuperar direito, ou se
aposentaria do esporte. Lorenzo virou um piloto de passado respeitável, mas de
presente altamente duvidoso. É fácil para alguém de fora criticar assim a falta
de resultados e performance pífia, mas em se tratando de competição de motos,
não ter confiança nas reações do equipamento em determinado momento, ou no
nível necessário para se conseguir resultados é um problema que não deve ser
subestimado.
A estréia em 2002, nas 125cc. O início de uma carreira que só decolaria mesmo nas 250cc. |
Pilotar uma moto é
diferente de um carro, que oferece muito mais proteção, em caso de um acidente
forte. Mas numa moto, o piloto fica muito mais exposto em um acidente, e muitas
vezes, não dá para contar com a sorte numa hora destas. Uma posição errada ou
no segundo errado, pode ter consequências gravíssimas. Jorge já havia tido seis
tombos até o acidente em Assen, o mais grave da temporada, quando tentava levar
a moto mais ao limite. As sequelas do tombo na Holanda podiam ter sido muito
mais graves, e seu período de recuperação, para alguns, foi insuficiente, se
não apenas físico, mas também mental. Uma pausa teria sido muito mais útil a
Jorge, para retornar apenas no ano que vem, do que voltar à pista este ano, e
mostrar desempenhos que nem de longe lembram os bons tempos de Lorenzo.
O que deveria ser a
temporada de “redenção” do espanhol, acabou virando o ano de seu ocaso,
culminando com o anúncio de sua aposentadoria como piloto, pelo menos titular,
da MotoGP, aos 32 anos, quando ainda teria, em tese, mais alguns anos de
competições pela frente. Foram 203 corridas na classe rainha, com 47 vitórias,
43 pole-positions, 114 pódios, 3 títulos mundiais, três vice-campeonatos, e 30
voltas mais rápidas. Some-se a isso mais 94 corridas nas classes 125cc e 250cc,
com dois títulos nesta última, com 21 vitórias, 26 poles, 38 pódios, e 7 voltas
mais rápidas. Um currículo nada desprezível, e que confere a Lorenzo sua
posição como um dos gigantes da história da MotoGP. Só ele pode responder a si
mesmo se está tomando a decisão correta, mas é sua vida, sua saúde, e suas
prioridades, e tem todo o direito de se retirar, dadas as dificuldades
enfrentadas neste ano. Uma pena deixar a carreira depois de um ano tão
conturbado e tão abaixo das expectativas. Ele merecia mais, mas infelizmente,
nem sempre podemos fazer as coisas na vida como queremos. Que Lorenzo siga
agora com seus novos projetos de vida, e seja lembrado pelas conquistas que teve
nas duas rodas, e ao menos se respeite sua decisão.
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