sexta-feira, 4 de novembro de 2016

FÁBRICAS: O LADO BOM E O LADO RUIM



Depois da Audi anunciar sua saída do Mundial de Endurance, agora a é a Volkswagen que deixará o Mundial de Rali, mesmo com o carro para 2017 pronto.

            O mundo do automobilismo mundial anda quente nestes últimos dias. Se na semana passada tivemos o anúncio da Audi declarando que deixaria o Mundial de Endurance já ao fim desta temporada, e não ao fim de 2017, como muitos já davam como certo, esta semana foi a vez de mais duas equipes de fábrica serem tiradas de campo, e de forma tão abrupta e surpreendente quanto foi o da marca das quatro argolas. A Volkswagen anunciou dias atrás que está deixando o campeonato Mundial de Rali, e a mais nova bomba que surgiu é da Lada, que também deixará de participar de um importante campeonato mundial, no caso da marca russa, o WTCC. E já para 2017. Terminadas as competições da atual temporada, adeus.
            No caso do Mundial de Rali, a decisão deixa desempregado ninguém menos do que Sébastian Ogier, atual tetracampeão da categoria, que venceu os campeonatos nos últimos 4 anos consecutivos. Em outras palavras, o time campeão está indo embora, e não é por falta de bons resultados. Imagine como seria se a Mercedes de repente anunciasse que está fora da F-1, como equipe e fornecedora de motores, mesmo levando os títulos das últimas temporadas, e desta também? Isso dá uma idéia da dimensão do impacto que a decisão da Volkswagen causou entre o pessoal do Mundial de Rali, que ainda está tentando digerir o comunicado da marca alemã. O que se comenta é que o escândalo que abalou a reputação da Volkswagen no ano passado, quando se descobriu uma fraude nas verificações de emissão de gases dos veículos da marca, que levou o grupo a tomar uma multa bilionária por forjar resultados falsos, está pesando mais do que se esperava, e daí o fato de resolver cair fora de dois campeonatos de renome mundial, a fim de economizar uma grana que não é nada desprezível. Não é a primeira vez que vemos fábricas e montadoras puxarem o fio da tomada em seus programas de esporte a motor, e certamente, não serão as últimas. Daí, fica a pergunta: os times de fábricas são algo positivo ou negativo para as categorias em que estão presentes?
            Na década passada, Max Mosley, presidente da FIA, havia alertado para o fato de que a F-1 não poderia ficar refém das montadoras. O dirigente inglês alertou que as fábricas ficavam na competição muito bem enquanto estivessem ganhando, mas que podiam sair ao menor sinal de problemas, o que poderia ser muito ruim, ao contrário dos times particulares, que lá competiam porque essa era sua razão de ser. Bom, suas palavras foram proféticas: com a crise mundial de 2008, a F-1, que até então exibia uma “pujante” disputa entre várias montadoras, que haviam comprado ou feito associação com os times presentes na competição, resolveram abandonar o barco da categoria máxima do automobilismo sem a menor cerimônia. A BMW, no primeiro momento em que seu time caiu de performance, resolveu ir embora, e pouco depois acabou sendo seguida por Toyota e Honda. Na prática, a F-1 perderia três times, mas o estrago foi minimizado, com a “recompra” da BMW por Peter Sauber, reavendo o comando de seu antigo time, que tinha sido “comprado” pela marca bávara; e o repasse do time da Honda a Ross Brawn, que assumiu o comando da estrutura montada em Brackley e seguiu adiante, que algum tempo depois seria comprada pela Mercedes, atual time dominante na categoria. A rigor, só a Toyota mesmo resolveu puxar o carro, com a F-1 perdendo realmente um time.
A Toyota também desistiu da F-1 após várias temporadas sem conseguir os resultados pretendidos. A Ford (abaixo) fez o mesmo, e vendeu seu time, a Jaguar, para a Red Bull.
            Max Mosley ainda tentou arregimentar novos times “particulares”, além de impor um teto de gastos a fim de tornar a F-1 mais acessível. Mas acabou vencido pela politicagem, que uniu Bernie Ecclestone e as montadoras, que obviamente eram contra o limite de gastos. Mas o aviso de Mosley sobre as fábricas ficarem enquanto apenas lhes fosse conveniente não era em vão. O problema é que pouco se fez para mudar essa situação, quando muito absolutamente nada foi feito de positivo. Se é verdade que o número de fábricas atuantes na F-1 diminuiu, os efeitos de sua entrada continuam mais firmes do que nunca, e não são nada bons.
            Citando o exemplo da F-1, as fábricas tiveram participação fundamental na criação da categoria, em 1950. As grandes marcas da época em sua maioria estavam todas lá, mas com o passar do tempo, elas foram saindo, e seu lugar foi ocupado pelos “garagistas”, amantes do automobilismo que construíam seus carros de competição praticamente nas garagens de suas casas ou empresas, daí o termo que passou a designar estes empreendedores que formavam estas escuderias para competir no certame. Dos times de fábrica, apenas a Ferrari permaneceu, enquanto outras marcas iam e vinham. A presença de grandes marcas sempre foi um trunfo para angariar credibilidade a um campeonato. Afinal, como ignorar nomes como Porsche, Ferrari, Honda, Renault, Ford, entre tantos outros, numa competição? Até o fim dos anos 1980, entretanto, a discrepância entre os recursos de times de fábrica e times privados sempre foi contornável pelo talento que abundava nos times particulares. Mas, a partir dos anos 1990, os crescentes custos de competição começaram a atingir níveis estratosféricos, e a partir dali, apenas quem não tivesse uma grande montadora por trás tinha chances de obter o sucesso pretendido.
            Não foi por outra intenção quando a FIA, leia-se Max Mosley (sim, o mesmo que tempos depois se mostraria contra a presença ostensiva de montadoras no grid), e com o aval de Bernie Ecclestone, louvaram a chegada de várias montadoras na F-1. A BMW, Renault, Honda, Toyota, e Ford se juntariam a um grupo que tinha a Ferrari e a Mercedes, e a categoria máxima do automobilismo se transformaria num autêntico mundial de marcas. Para sobrevalorizar, ainda criaram um “limite” de vagas no grid que se tornou um autêntico tiro pela culatra, na ânsia de dourar sua pílula. Um dos pontos positivos, se diziam, é que com tantas fábricas, não haveriam mais times pequenos no grid, e com todas as escuderias tendo recursos e apoio à vontade das grandes fábricas, a competitividade melhoraria. E quem não queria ver, em teoria, nada menos do que todos os times disputando vitórias e o campeonato? Mas entre teoria e realidade, sempre houve uma grande distância, e o esperado equilíbrio de forças nunca veio.
A BMW tinha tudo para ser uma força na F-1, mas no primeiro tropeção, desistiu de tudo e caiu fora. E não pensa em voltar até hoje.
            O que veio foi que, com recursos à vontade, foi se criando uma estrutura gigantesca para os times continuarem a disputar a F-1. Se até o fim dos anos 1990, ainda era possível a um time competir com uma estrutura pequena, porém profissional, com bom gerenciamento e patrocínios suficientes, nada disso era mais capaz na década que abria o novo século. O resultado é que hoje, mesmo depois da partida de várias destas fábricas, ficou uma estrutura sem a qual os times não conseguem mais prescindir para disputar a competição. Não por acaso, a tentativa de se arregimentar novos times a partir de 2010 foi pífia, e além de critérios questionáveis na escolha dos “eleitos”, ficou patente a diferença de nível entre quem já estava estabelecido, e quem estreava. O desnível se vê ainda hoje quando a Manor, único time “remanescente” desta nova leva de escuderias novas, ainda está no fim do grid, conseguindo ocasionalmente alguns brilharecos, que devem ser relativizados pelo fato de a Mercedes ter passado a investir no time, utilizando-o para formar seus pilotos.
            Competir na F-1 se tornou uma tarefa ainda mais ingrata e complicada. A escuderia de Gene Hass, o mais novo time da categoria, levou mais de um ano se preparando para entrar com o pé direito, e ao fim de sua primeira temporada, Hass admite que ainda tem muito o que aprender, e que a F-1 é muito mais difícil e complicada do que imaginava. E olhe que Gene ainda tem um império empresarial por trás de si, o que certamente facilitou alguns passos. Mas, e se não tivesse? Atualmente, por mais que se “tente” baixar os custos de competição, a verdade é que a F-1 se tornou um gigante que não sabe mais como é viver sem ser grande. A estrutura de competição cresceu demais, e mesmo tendo cortado gastos em determinadas áreas, como os testes, tudo continua custoso e excessivamente caro. Dos times atuais, apenas Mercedes, Ferrari e Red Bull, e obviamente, a Renault, não tem problemas financeiros. Todos os demais, talvez menos a Hass e a Toro Rosso, dependem de ter estruturas enormes para competir, e precisam custear essa estrutura toda. Definitivamente, não há mais como um “aventureiro” chegar à F-1. Aliás, os “aventureiros” que fizeram a F-1 ser o que é hoje não são praticamente mais aceitos na competição. E a F-1 mostra que ainda prefere flertar com as montadoras, mesmo com estes riscos. Conseguiu trazer a Honda de volta, e tentou seduzir a Audi nos últimos anos, bem como tentar obter um sinal da BMW de um possível retorno. Bem, a Audi nunca se deixou encantar pela categoria, e a BMW, por sua vez, tão cedo não volta, também. Mas as estruturas de competição gigantescas e seus custos ficaram. Se antes um time de ponta contava com pouco mais de 100 pessoas, hoje essa escuderia conta com pelo menos 5 vezes esse número de funcionários. E isso é só um exemplo de como tudo isso cresceu nas exigências de competição da F-1.
            Esse foi o lado negativo que a chegada das montadoras propiciou à F-1. Mas outro lado negativo é quando vão embora, deixando a ver navios aqueles que dependiam destas marcas.
Quando todos contavam com a Peugeot no novo Mundial de Endurance, eis que os franceses deixaram todos a ver navios, pulando fora no último instante.
            Em 2012, a Peugeot, que disputava as provas de longa duração, simplesmente pulou fora do novo Mundial de Endurance (WEC), praticamente no último minuto, pegando a todos de surpresa. E agora, temos a Audi pulando fora do mesmo campeonato, mas anunciando isso de forma mais honesta e correta, ainda que tenha pego todo mundo de surpresa. Mas nem sempre uma fábrica abandona tudo de um momento para o outro, só por que quis sair, por uma decisão da diretoria. Em 1996, a Renault, que vinha ganhando tudo na F-1, anunciou que estava deixando a categoria, com a sensação do dever “cumprido” pelo sucesso alcançado. Mas isso se daria ao final do ano seguinte, 1997, o que deixou todo mundo de sobreaviso para procurar novas parcerias. E mesmo quando a marca francesa deixou a competição, seus motores continuaram disponíveis através da Mecachrome, parceria da Renault de longa data, para quem ainda quisesse os seus propulsores, obviamente sem o mesmo nível de desenvolvimento. A Honda, quando saiu ao fim de 1992, já tinha feito também seu aviso com antecedência, ao contrário do que aconteceu ao fim de 2008, quando a escuderia foi fechada em dezembro, com o projeto do carro de 2009 quase finalizado, deixando todo mundo na mão, o que só não foi pior em virtude de eles terem repassado o time a Ross Brawn, para quitar as obrigações pendentes.
            No caso de agora, a Volkswagen sai de cena no rali com o carro de 2017 praticamente pronto, mas que nunca irá competir, pois a fábrica não tem planos de fornecê-lo a times particulares. No caso da Lada, a marca deverá participar de competições a nível local, em um remanejamento de seus recursos. A Audi já declarou que seu foco será a Formula-E a partir de agora, e ainda mantém sua participação no DTM, o campeonato de turismo alemão.
A Lada também está saindo de um campeonato de renome, o WTCC.
            Por essas e outras, muitos defendem que não haja times de fábrica nos campeonatos. Esse sentimento de “conveniência” de que muitas montadoras só permanecem quando está se favorecendo na competição – leia-se ganhando, não pode ser ignorado. Mas é fácil afirmar também que eles só fazem o que dão na telha. Muitas vezes a decisão de abandonar não é fácil, e muito menos intempestiva. A Toyota gastou rios de dinheiro na F-1 em seu time oficial, e simplesmente cansou de gastar tanto por pouco retorno. Do mesmo modo, a Peugeot e a Chrysler também deixaram a categoria com sentimento de desilusão após empenharem-se a fundo para fornecer um bom equipamento e não terem seus esforços correspondidos.
            E as marcas vão e vem. A Citroen, depois de uma pequena pausa, estará de volta ao Mundial de Rali no próximo ano. Na MotoGP, a KTM já prepara sua nova investida na classe rainha do motociclismo também no próximo ano. Mas é preciso sempre deixar aberta a porta para a entrada das equipes particulares, dando-lhes condições de competirem de forma saudável, criando seus próprios carros de competição, ou se valendo de equipamentos desenvolvidos por terceiros. É preciso impor limites para evitar que os times de fábrica, pelo imenso poder financeiro das corporações que tem por trás, desequilibrem a competição a seu favor, provocando um encarecimento dos custos e da estrutura de competição que muitos times privados não tem condições de manter. Garantindo que os times particulares sempre estejam na competição, minimiza-se os efeitos negativos que marcas de fábrica causam quando saem de supetão de um certame. Diferente das escuderias das montadoras, os times privados tem na competição sua razão de ser, e muito mais dificilmente irão debandar da disputa.
            E é possível também que um campeonato seja disputado sem equipes de fábrica. E que se possa ser um bom campeonato. Mas sempre é bom que as competições possam ter respaldo de grandes marcas. Afinal, todas elas tem seus admiradores pelo mundo todo, e os campeonatos que contam com seu apoio se aproveitam desta admiração pela marca. Afinal, como se pode ignorar a presença da Ferrari no grid da F-1. E a Porsche na Endurance? Ou a Honda e Yamaha na MotoGP? Tudo tem seu lado bom e ruim. Deve-se batalhar sempre para encontrar o ponto de equilíbrio ideal, que permita que os efeitos positivos possam ser bem aproveitados, e impedir que os efeitos negativos tenham repercussão além do esperado.
            Sempre é ruim quando vemos grandes marcas abandonando seus projetos no mundo do esporte a motor. Audi, Volkswagen e Lada farão falta nos certames em que estavam presentes. Não é o fim do mundo para estas categorias, mas que parte do charme que atrai os fãs para estes campeonatos se esvai, é inegável. Estes últimos dias não foram mesmo bons para o mundo da velocidade. Esperemos que não venha mais nenhuma surpresa inesperada deste tipo ainda este ano...

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