Na disputa pelo título deste ano na classe rainha do motociclismo, eis que deu mais uma vez Francesco Bagnaia, que coroou a conquista do segundo título consecutivo com uma vitória na etapa de encerramento da competição, no Circuito Ricardo Tormo, em Valência, na Espanha. Uma conquista histórica, especialmente para a Ducati, que fez novamente o campeão, já que Casey Stoner, após a conquista do primeiro campeonato, em 2007, fracassou na defesa da conquista no ano seguinte, cujo título ficou nas mãos da Yamaha, com Valentino Rossi. Mais um feito para a conta de “Pecco” no ano do bi: ele é o primeiro piloto da competição a repetir o título ostentando o Nº 1 em sua moto, desde que Michael Doohan conquistou seu 5º e último título na categoria, em 1998, tendo sido também o campeão de 1997. De lá para cá, todos os campeões da MotoGP que repetiram a conquista nos anos seguintes nunca levaram o número de direito dos campeões nas suas motos. Valentino Rossi sempre correu com o 46, assim como Marc Márquez carimbou todos os seus títulos com o 93.
Tal como em 2022, a disputa pelo título chegou à etapa final de um campeonato que muitos imaginavam que seria dominado pela Ducati, e com Bagnaia, mais experiente e calejado, dominando a situação de forma mais eficiente do que no ano anterior. Bom, o título foi mesmo da Ducati, que em um ano de grande dominação, deitou e rolou em cima da concorrência, mas na luta pelo título, tivemos uma surpresa até inesperada, quando Jorge Martin, do time satélite da marca italiana, entrou de mala e cuia na briga pelo título justo na reta final da competição, quando todos esperavam, de início que a briga fosse ocorrer dentro das garagens do time de fábrica da marca de Bolonha.
Afinal, o time de fábrica, além de contar com o campeão reinante, tinha o reforço de Enea Bastianini, que em 2022 assombrou com a Gresini, vencendo corridas, e ficando quase até o fim do ano como postulante ao título. Sua promoção para o time oficial era uma justa recompensa ao italiano, que teria todas as chances de medir forças com Bagnaia na briga pelo título de 2023, já que a concorrência não conseguia apresentar armas à altura para discutir o domínio da Desmosédici na categoria. Mas Bastianini foi a nocaute logo na primeira etapa, sofrendo um forte acidente que o afastou de várias corridas, perdendo chances importantes de pontuar e de tentar competir com “Pecco”, que sem o parceiro, simplesmente disparou na classificação, liderando a competição sem oposição interna no time. Enea, quando de seu retorno, também demorou a se entrosar com o equipamento, de modo que a Ducati viu apenas um de seus pilotos em luta efetiva pelo título. Um refresco para Bagnaia, que perdia ali o principal rival que poderia ter, ou assim esperávamos.
Tanto que, mesmo cometendo alguns erros nas primeiras corridas, “Pecco” nunca perdeu a condição de favorito, e foi aumentando sua vantagem na liderança, a ponto de ter mais de 60 pontos de dianteira. Tudo parecia caminhar para um desfecho antecipado da contenda, mas aí o campeão sofreu o acidente de Barcelona, e tudo se complicou. Jorge Martin, que já vinha tendo uma excelente temporada, despontou como um furacão por esta altura do campeonato, e aproveitou as chances para demolir a vantagem do campeão, a ponto de colocar o seu favoritismo, e do próprio time oficial da Ducati em dúvida. Com “Pecco” tendo de se recuperar do acidente, sem poder dar tudo de si, o máximo que dava para fazer era tentar administrar a situação, que junto com alguns erros e azares do próprio Martin, conseguiu chegar para a corrida final, em Valência, com uma vantagem de 21 pontos na classificação. Muito bom? Mais ou menos, afinal, em 2022, ele também decidira o título na última corrida, onde chegou com 23 pontos de vantagem, mas nem por isso a situação foi mais tranquila, mesmo tendo conquistado o título da temporada.
E neste ano, com a corrida Sprint, e um total de 37 pontos em jogo, tudo ficava ainda mais complicado. Martin simplesmente teria de ir para o tudo ou nada, enquanto Bagnaia teria de se impor, mas ao mesmo tempo, ter prudência no quanto arriscar durante a corrida. E o espanhol da Pramac saiu na dianteira, ao vencer a prova curta de sábado, e reduzir a vantagem para 14 pontos, com o 5º lugar do então campeão. A situação de “Pecco” ainda era tranquila, mas estamos falando de uma competição de motos, onde os riscos são maiores do que os de uma competição de carros, e não dava para fazer prognósticos mais preciso para a corrida de domingo, onde tudo ainda poderia acontecer. Era preciso manter o foco e a cabeça fria, e neste aspecto, Bagnaia levava vantagem, enquanto Martin tinha de ir mais uma vez para o tudo ou nada. Um 5º lugar na corrida de domingo já seria o bastante para sacramentar o título, independente do que o rival da Pramac fizesse.
E esta característica definiu tudo no domingo. Bagnaia assumiu a ponta, enquanto Martin foi para o tudo ou nada de fato, arrancando logo para assumir a 2ª posição, e partindo ao encalço do piloto da Ducati oficial. Não demorou para o espanhol embutir no italiano, em plena reta do circuito, mas na tentativa desesperada de assumir a liderança, perdeu o equilíbrio com o vácuo de Bagnaia, e saiu da pista. Como a área de escape não era de brita, Jorge conseguiu controlar a moto e voltar, agora em 8º lugar. A situação começava a escapar de seu controle, já que teria de brigar de novo para chegar na ponta, e para isso, duelar com outros pilotos, enquanto Bagnaia seguia firme na liderança, mais próximo do título do que nunca. E, mais uma vez, a pressa de Jorge cobrou seu preço: depois de duelar com Maverick Viñalez e superar o piloto da Aprilia, Jorge foi para cima de Marc Márquez, mas acabou tocando no piloto da Honda, que acabou catapultado da moto numa curva, obrigando Martin a seguir reto para evitar atingir tanto a moto de Márquez quanto o compatriota, e com isso ele caiu na brita, deixando a corrida. Fim de disputa, Bagnaia já era bicampeão, para frustração de Jorge, que ficou inconsolável por um bom tempo no box da Pramac. A precipitação de Martin em tentar resolver tudo foi visível: quando ele deixou a corrida, era apenas a 6ª de uma corrida de 27 voltas, onde tinha tudo para pelo menos vencer, e sair como vencedor moral da disputa, mesmo perdendo o título para Bagnaia.
No restante da corrida, Bagnaia ainda se permitiu correr com mais tranquilidade, após ser avisado que o rival estava fora de combate. Ele até acabou sendo superado pela dupla da KTM, mas Brad Binder errou sozinho e saiu da pista, perdendo a liderança, e em seguida, Jack Miller, que parecia firme para vencer, caiu sozinho, e encerrou a temporada na caixa de brita, para frustração do australiano e de seu time, que ficou sem vencer na temporada. “Pecco” assumiu a liderança, mas não venceu com tranquilidade: pela segunda prova consecutiva, Fabio Di Giannantonio, da Gresini, veio implacável nas voltas finais, tentando repetir o triunfo obtido no Qatar, mas desta vez não conseguiu superar Bagnaia, que cruzou a linha de chegada ainda na frente, vencendo pela 7ª vez no ano, e consagrando o segundo título com mais um triunfo. Só que o esforço de Di Giannantonio acabou frustrado por uma punição de 3s por pressão inferior nos pneus à recomendada pelo fabricante, e com isso, ele caiu para o 4º lugar, com Johaan Zarco (Pramac) terminando em 2º, e Brad Binder fechando o pódio (KTM).
A festa foi grande no circuito espanhol, ainda em plena pista, com o pessoal da Ducati, e até mesmo Bagnaia vestindo camisas comemorativas do bicampeonato, e com o novo bicampeão recebendo cumprimentos de seu mentor e incentivador, ninguém menos que Valentino Rossi, que tem propiciado o surgimento de vários talentos através de sua Academia VR46. O pódio até atrasou, mas de forma plenamente justificável. E, pelo menos, depois de tanta disputa acirrada nas etapas finais da temporada, e mesmo tremendamente desgostoso com a perda, Jorge Martin foi cumprimentar “Pecco” no parque fechado, reconhecendo a vitória do agora bicampeão, e que não fez o necessário para conseguir vencer o campeonato. Pode ter sido sua maior chance, já que não se sabe se a Pramac conseguirá repetir o desempenho visto este ano, tomando como exemplo o ocorrido com a Gresini, que em 2022 surpreendeu com Bastianini, mas este ano apenas mostrou a mesma força na reta final da competição.
Bagnaia mostrou-se um piloto de resultados em 2023. Suas vitórias nunca foram shows de pilotagem e performance, com todos os seus triunfos sendo conquistados por margens pequenas de diferenças para os concorrentes. À exceção da corrida de domingo da Áustria, onde recebeu a bandeirada de chegada com mais de 5s de vantagem para Brad Binder, o italiano sempre venceu por pouco. Para alguns, ele andou apenas o “necessário”, evitando forçar o ritmo e o equipamento, e por isso mesmo, também minimizando riscos. Para outros, contudo, ele não teria sido capaz de ir além disso, mostrando-se um piloto que apenas tem sorte de estar com a melhor moto do grid. Mas “Pecco” fez uma campanha extremamente regular este ano. Tirando os abandonos, ele terminou apenas uma corrida fora do TOP-3, na Argentina, e acumulou 4 abandonos. Isso nas corridas principais, justamente as que distribuíam mais pontos, enquanto seu desempenho nas corridas Sprint foi mais irregular, mas com menos pontos perdidos diante da menor pontuação das mesmas.
Ele também não é tão carismático como alguns outros pilotos do grid, mesmo que tenha um perfil simpático. Por isso mesmo, ele pareceu ter feito, para muitos, apenas o “dever de casa”, que era ser novamente campeão, já que dispunha da melhor moto do grid, mas seria inverídico dizer que ele não mereceu de fato o título, especialmente por manter a cabeça fria nas provas finais, quando acossado fortemente por Jorge Martin, evitando cometer estripulias e reagir intempestivamente. Começando os treinos de cada etapa de forma discreta, ele sempre tentou achar o melhor acerto da moto, muitas vezes tendo de participar do Q1, e não avançando direto ao Q2, para ter mais tempo para buscar o ajuste ideal do equipamento, priorizando a performance na corrida, e nem tanto na classificação. Mesmo assim, nem sempre foi bem-sucedido, por vezes tendo de largar de posições ruins no grid, e sem um andamento à altura para uma corrida de recuperação ideal, mas mesmo assim conseguiu impedir o pior, que era deixar o rival assumir o controle da situação e da classificação do campeonato, o que o espanhol conseguiu fazer apenas momentaneamente, de modo que Martin sempre precisou focar no ataque e vir com tudo, e com isso assumindo maiores riscos, e expondo-se mais a cometer erros e azares por tal posição. E vimos isso nas duas etapas finais, onde justamente erros e azares do piloto da Pramac acabaram por se mostrar fatais para suas aspirações de levantar o título de campeão. Em Losail, uma partida falhada comprometeu os pneus da moto da Pramac, enquanto em Valência, a urgência em assumir a liderança da corrida fez Jorge ir com muita sede ao pote quando ainda havia muita corrida pela frente. Jorge Martin pode ter se mostrado o piloto mais rápido na pista na reta final do campeonato, mas não se ganha um título somente sendo o mais rápido, é preciso também entender a corrida como um todo, e saber o momento de atacar e de defender posição. Neste sentido, Bagnaia se mostrou um piloto muito mais completo que Martin, e isso foi decisivo para ele garantir o bicampeonato.
“Pecco”, contudo, ainda tem o que melhorar em sua pilotagem. Se em 2022 ele comprometeu boa parte da primeira metade da temporada com quedas que poderiam ser evitadas, ele ainda sofreu deste problema em 2023, mas bem menos, mostrando evolução nesse sentido. Se ele aprimorar ainda mais sua condução, poderá se tornar um piloto ainda mais completo e difícil de bater, para azar da concorrência. Mas a própria Ducati também precisa melhorar sua eficiência, pois em algumas corridas, em especial na reta final, o time de fábrica pareceu não ter encontrado o melhor acerto da Desmosédici, enquanto a Pramac, seu time satélite, pareceu ter chegado melhor ao ajuste do equipamento, lembrando que a escuderia é a única satélite que competiu com a mesmo GP23 do time oficiail, enquanto Gresini e VR46 estavam servidas com o modelo GP22. Mesmo tendo à disposição as informações de todos os seus pilotos no grid, do time de fábrica e dos times satélites, por ser a equipe oficial, e a de maiores recursos técnicos e financeiros, a escuderia tinha a obrigação de apresentar melhores resultados. Por outro lado, o fato de Gresini, VR46, e especialmente a Pramac, vencerem corridas e batalharem por boas posições no campeonato apenas confirma o momento favorável da marca italiana, que possuiu o melhor equipamento do grid, tanto na moto 2023 quanto na moto 2022. Tanto que o TOP-3 do campeonato foi composto de pilotos Ducati. Além do campeão Bagnaia, e do vice Martin, Marco Bezzecchi, da VR46, assegurou o 3º lugar na competição, tendo vencido 3 provas no ano.
Isso também reflete como os concorrentes não souberam apresentar resultados mais condizentes nesta temporada. Mesmo a KTM, apesar de mostrar boa performance em várias corridas, ficou zerada em vitórias, e Brad Binder terminou como melhor piloto não-Ducati o ano, em 4º lugar. A Honda continuou perdida em 2023, mais até do que em 2022, e trabalha para se reinventar em 2024, agora sem sua maior estrela, Marc Márquez, que foi para a Gresini. A Yamaha teve alguns brilharecos em algumas provas, mas passou longe de vencer corridas, e sequer de tentar brigar pelo título. E mesmo a Aprilia, sensação de 2022, decaiu em 2023, obtendo apenas duas vitórias, e colocações medianas na classificação final com seus pilotos, que terminaram em 6º e 7º lugares, sem nem terem sequer insinuado intrometer-se na briga pelo campeonato.
Apesar disso, as corridas não foram chatas. Tivemos muitos duelos e disputas entre vários pilotos, como costuma ser de praxe da classe rainha do motociclismo. Que possamos ver novamente estas disputas em 2024, mais uma vez, e com mais brigas e competição na pista. O ano de 2023 dá seu adeus, mas ao contrário do que vimos na F-1, deixa saudades pelas disputas intensas que pudemos vivenciar.
O treino de pós-temporada da MotoGP em Valência já teve os pilotos que mudaram de time para 2024 estreando em suas novas escuderias. Johaan Zarco começou os testes com a moto Honda da LCR, da mesma maneira que Luca Marini deixou as Ducatis da VR46 para estrear sua moto Honda do time oficial. Franco Morbidelli assumiu sua nova moto Ducati na Pramac, após as últimas temporadas defendendo a equipe da Yamaha. E Fabio Di Giannantonio, que começou o fim de semana em Valência sem time para o próximo ano, foi confirmado para ocupar o lugar de Marini na VR46, e já fez seus primeiros tempos no novo time. E, claro, a grande sensação foi ver as primeiras voltas do hexacampeão Marc Márquez acelerando pela a Ducati da equipe Gresini, depois de praticamente uma década com a Honda, que fez um belo painel de despedida agradecendo aos trabalhos prestados pela “Formiga Atômica”, bem como os seis títulos de pilotos conquistados no time da asa dourada. Outra estréia foi de Pedro Acosta na equipe Tech3, ocupando o lugar que foi de Pol Spargaró, colocado parcialmente de escanteio pela KTM, rebaixado à função de piloto de testes e com promessa de participação em seis provas no próximo ano como wild card do time satélite da marca austríaca, para dar lugar a Acosta. Os testes terminaram com Maverick Viñalez fechando o topo da lista de tempos, com Marc Márquez ocupando a 4ª colocação em sua primeira atividade oficial como piloto da Gresini. Agora a classe rainha do motociclismo só volta à ação em fevereiro, nos testes da pré-temporada de 2024.
Marc Márquez inicia sua nova vida na Gresini. Expectativa para a temporada de 2024. |
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