sexta-feira, 18 de setembro de 2020

PERSISTINDO NO ERRO

FIA tornou a entrada de novos times na F-1 mais difícil do que já era.

           
Em tempos complicados como os que estamos vivendo atualmente, é normal esperarmos um mínimo de bom senso, a fim de que a situação não piore ainda mais. E, quando falamos da Fórmula 1, o mais famoso e visado campeonato de corridas do mundo, não é novidade para ninguém que a situação da categoria, a níveis financeiros, atingiu patamares que são absolutamente insustentáveis para boa parte de seus competidores, tanto que, finalmente foi estabelecido um teto orçamentário, válido a partir de 2021, como forma de tentar tornar a competição menos desigual, e mais viável para todos. Por que, uma hora, até mesmo as fábricas como Mercedes e Ferrari, diante da escalada de gastos, podem se cansar da brincadeira e ir correr em outros lugares, por mais impensável que alguns achem que isso possa acontecer.

            Por isso mesmo, é absurdo ver que a FIA resolveu estabelecer novas diretrizes ainda mais severas para a admissão de novas escuderias que tenham interesse em participar da F-1 no futuro, com validade já para 2021. Como se entrar na categoria máxima do automobilismo já não fosse complicado por si só, eis que agora qualquer um novo interessado que queira fazer parte do campeonato, com um novo time, terá de pagar uma taxa de admissão altíssima, na faixa dos US$ 200 milhões, o que dá, pelo câmbio atual, mais de R$ 1 bilhão. E me pergunto, para que isso vai servir de positivo para a F-1, afinal?

            A justificativa, esdrúxula, é de “proteger” os ganhos financeiros que são distribuídos aos 10 times atualmente presentes na F-1. A premiação é dividida entre eles, segundo critérios estabelecidos, e a entrada de novos times iria “diluir” esses valores, o que poderia “comprometer” a saúde financeira das escuderias, que já contariam com a entrada de valores dos prêmios e participações nos seus orçamentos. Também é para impedir “aventureiros” na F-1, e manter a integridade e dignidade da competição, lembrando de times que anunciaram suas entradas na competição, e nunca o fizeram, ou competiram de forma totalmente inepta, e na opinião deles, “manchando” a reputação da F-1 como um campeonato “sério e idôneo”. A teoria poderia até parecer coerente, exceto pelo fato de que isso é conversa para boi dormir, e nem é uma desculpa nova, muito pelo contrário. Já vimos isso há cerca de vinte anos atrás, e na época, esse assunto foi o tema de uma de minhas colunas, onde expliquei que isso poderia ser um verdadeiro tiro no pé da F-1.

            Na época, por volta do início de 1999, a F-1 instituiu uma taxa absurda de cerca de US$ 50 milhões de “caução” para a entrada de novos times na categoria máxima do automobilismo, além de limitar o número de escuderias a 12 (24 carros). Na época, a F-1 contava com 11 equipes, com a expectativa de uma nova entrar no ano seguinte, por isso, o limite de 12 times. Como a F-1 na época atraía cada vez mais a atenção de grandes montadoras, a FIA e a FOM viram nessa jogada uma forma de “dourar” os times já existentes. Quem quisesse entrar teria de pagar essa taxa milionária, e se não houvesse mais vagas, no caso das 12 estivessem preenchidas, teriam de se associar, ou adquirir uma das escuderias que já participavam da competição. E claro, que isso exigiria muito dinheiro, porque os times já estabelecidos poderiam cobrar bem caro para aceitar vender sua participação para alguém. E, o alto valor dos cerca de US$ 50 milhões servia também para desestimular alguém interessado em competir apenas por vontade.

            Afinal, no início dos anos 1990 a F-1 viu a quebradeira de muitos times pequenos, reduzindo o número de participantes de forma drástica. E boa parte destes times muitas vezes tinha um desempenho bem discreto, andando sempre entre os últimos, e muitas vezes nem se classificando para a corrida. Tínhamos 26 vagas no grid, e muitos mais carros que isso inscritos, de modo que entre 1989 e 1993 tínhamos as famosas pré-classificações, onde 13 times já tinham acesso imediato aos treinos de classificação, e as quatro vagas restantes eram disputadas em um treino prévio entre todos os demais times. E havia times que nunca conseguiam chegar aos treinos classificatórios, fazendo menos do que mera figuração. O interessante, apesar de tudo, é que havia times que conseguiam se classificar em algumas corridas, e falhavam em outras, algo que praticamente não existe mais, onde todos que participam podem largar, cumpridos requisitos mínimos que são bem aceitáveis. Mas imaginem um time tradicional como a Lotus, que chegou a não conseguir largar em uma corrida? Isso é algo que os torcedores atuais nem acreditam que possa acontecer, já que todos largam hoje em dia, com o treino de classificação apenas estabelecendo a ordem de partida.

Times pequenos como a Osella (acima) não conseguiram obter bons resultados na F-1, mas tentatacam competir como podiam. Já times como a Andrea Moda (abaixo) ficavam abaixo da crítica, e a FIA resolveu barrar novos times pequenos já no fim dos anos 1990 para valorizar a F-1. O resultado acabou sendo duvidoso, com o grid da categoria nunca mais voltando a ter mais de 10 times, com raras exceções.
           


Na época, um dos objetivos de limitar o número de participantes era também evitar dividir o dinheiro gerado pela F-1 para mais times, de modo que os times já estabelecidos apoiaram a medida, visando seus próprios interesses, que é o que vemos atualmente, com os times praticamente se mostrando a favor dessa nova taxa ainda mais absurda de cerca de US$ 200 milhões, sendo que a antiga taxa de US$ 50 milhões já era algo astronômico. Só que o panorama atual é muito menos desanimador do que aquele que vivenciávamos no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Mas o resultado foi um verdadeiro tiro no pé para a F-1.

            Primeiro, é verdade que a categoria se tornava cada vez mais visada por grandes fabricantes da indústria automobilística, que se quisessem participar da brincadeira, teriam de pagar bem mais caro para isso. Só que o limite de 12 times praticamente nunca foi atingido a pleno. A Ford entrou, adquirindo a Stewart, e transformando-a na Jaguar. A Honda cancelou sua entrada como time, mas acabou substituída pela Toyota. A Renault retornou à F-1 comprando a equipe Benetton. A BMW associou-se à Williams, e algum tempo depois, adquiriu a Sauber. E a Honda, posteriormente, retomou seus planos e comprou a BAR, entrando como time completo também. Todas estas marcas investiram pesado na F-1, criando estruturas gigantescas para a competição. Só que os resultados não corresponderam à realidade.

            Primeiro, foi a Ford a se retirar, em fins de 2004, e vendeu seu time para a Red Bull, garantindo assim a manutenção do número de escuderias presentes. Na crise econômica de 2008, a Honda abandonou o barco, com seu time sendo assumido por Ross Brawn para 2009. A Toyota, cansada de gastar rios de dinheiro sem nunca conseguir ir além de resultados medianos, também pulou fora ao fim de 2009, decisão que também foi tomada pela BMW, que repassou a Sauber de volta a seu antigo proprietário. Só que, no caminho, vimos a falência dos times da Arrows, Prost (antiga Ligier), e Super Aguri. Resultado, a F-1 viu seu número de participantes encolher ao invés de aumentar, e a tão esperada valorização dos times nunca aconteceu de fato, já que as 12 vagas nunca foram preenchidas totalmente.

            Mas sobraram consequências perversas desta atitude: todos os times passaram a contar com estruturas de competição enormes, exigindo altíssimos gastos não apenas na manutenção destas estruturas, como nos gastos de competição, que subiram ainda mais, e isso só para se conseguir alinhar no grid, sem garantias de sucesso do dinheiro gasto, um risco que nunca foi novidade na F-1, mas que agora ficava cada vez mais alto e de retorno duvidoso. Quem não estivesse associado a um grande grupo passou a não ver mais nenhuma possibilidade de sucesso na categoria. A Williams, que se encontrava nessa condição, praticamente decaiu temporada após temporada, com raras exceções. E, se antes, uma temporada ruim ainda era suportável, passou a ser quase uma sentença de morte na F-1, com o time que porventura tivesse o azar de fazer um projeto equivocado de carro nem ter condições quase de continuar seguindo na competição.

Red Bull e Racing Point entraram na F-1 adquirindo times já existentes, único meio de se evitar a extorsiva nova taxa estabelecida pela FIA.

          
  Com a crise econômica, que fez inúmeros patrocínios desaparecerem, a FIA até tomou medidas para baixar os custos, mas como os recursos também diminuíram, proporcionalmente os gastos dos times continuaram tão ou até mais altos do que antes. Tentando “arejar” a F-1, Max Mosley, que anos antes tinha apoiado a taxa de U$ 50 milhões, bem como o limite de participantes junto com Bernie Ecclestone, reconheceu o erro que cometeu, e até permitiu a entrada de novos times na categoria. Mas, novamente, a FIA fez uso de critérios mais políticos do que técnicos, e foram admitidos times que demonstraram estar totalmente despreparados para o nível de competição da F-1. Campos (que depois viraria Hispania), Lotus (que depois seria a Catheram), e Manor (que viraria Virgin) até conseguiram competir, mostrando boa vontade de disputar as corridas, ao passo que a USF1 nem chegou a construir mais do que o bico de um carro. E mesmo assim, estes times ficaram praticamente numa classe à parte da F-1, andando sempre no fim do grid, com chances de bons resultados praticamente inexistentes, diante da diferença de performance, decorrente das necessidades de estruturas de competição que se tornaram impraticáveis para muitos.

            Não deu outra: todos estes times se arrastavam nas corridas, e depois de poucas temporadas, todos eles desapareceram do grid, e da memória dos torcedores. O único time a entrar na categoria foi a Hass, em 2016, que fez todo um grande planejamento e projeto para competir a sério na F-1, e até mostrou bons resultados no pelotão intermediário, mas que já se encontra em dúvida se segue na competição, depois da temporada ruim do ano passado, algo que infelizmente continua em 2020, e deverá persistir em 2021, de forma que Gene Hass já avalia vender seu time a quem se interessar em comprar, se não encerrar suas operações na F-1. A Williams, depois de mais duas temporadas ruins recentes, capitulou e foi posta à venda, sendo adquirida por um fundo de investimentos, e pelo menos, garantindo sua presença no grid a curto prazo. Mas, até quando?

            Com apenas 10 times, e 20 carros, a F-1 não consegue atrair competidores de potencial por meios normais, e agora, ainda impõe uma taxa totalmente desvairada para quem quiser se aventurar na categoria? Diferente da virada do século, a F-1 hoje não seduz tanto quanto antes, e os grandes fabricantes que ela gostaria de ver no grid tem outros planos. A Toyota foi ser feliz no Mundial de Endurance, onde seus esforços frutificaram e já foi campeã. A BMW não tem interesse mais na F-1, e prefere concentrar seus esforços na Formula-E, o certame de carros de competição monopostos elétricos, onde também estão Porsche e Audi, dois nomes que a F-1 tentou muito trazer para seu campeonato, mas recebendo sonoros “nãos” por conta dos cultos altíssimos de competição, além do regulamento ser muito mais complicado, para não mencionar da politicagem da categoria. Outros nomes de peso, como Nissan e Citroen, também estão na F-E, e não tem desejo ou planos de virem para a F-1.

            Se competir na F-1 já demanda custos astronômicos só para conseguir alinhar no grid, colocar essa taxa exorbitante é simplesmente um aviso de que ninguém era bem-vindo na competição, na prática. Quem teria US$ 200 milhões, só para ter o direito de ingressar na competição? E não vamos esquecer que ainda haverá o custo de se montar toda a estrutura de competição, algo muito barato, não é? Se a categoria máxima do automobilismo não conseguiu atrair novos interessados nos últimos anos como desejaria, agora ela inviabiliza de vez a chance de novos times surgirem. Há opções mais em conta no mundo do esporte a motor, mesmo que sem ter a mesma visibilidade da F-1, para quem quiser competir, e sem tantas firulas e frescuras a serem exigidas. A F-E é o maior exemplo disso, onde vemos um número de fabricantes de dar inveja à F-1, que está restrita no momento a Ferrari, Renault, Mercedes e Honda, enquanto na categoria dos carros elétricos já temos a Mercedes (sim, eles também estão apostando na competição dos monopostos elétricos), a Porsche, Audi, BMW, Nissan, Citroen, e Jaguar, além de termos nomes como Penske e Mahindra presentes, só para citar os menos famosos da turma.

            E tem outro detalhe interessante: esta nova taxa não será paga à FIA, mas às outras equipes na competição. É como se fosse na prática um “suborno” aos times já estabelecidos, para que estes “autorizem” a entrada de um novo time na disputa. Se não pagar, nada feito.

            Já não é de hoje que a F-1 periga ficar com menos de 20 carros no grid, sendo que já se especulou que, caso isso acontecesse, seria necessário que alguns times alinhassem três carros, como forma de compensar o menor número. Já se tentou viabilizar alternativas para melhorar as condições de competição de alguns times, como a venda de chassis, como acontecia até os anos 1970. Infelizmente, a politicagem da categoria não permitiu que esta e outras propostas pudessem ser adotadas, e a atitude da FIA agora, com a instituição dessa taxa absurda, mostra que eles preferem andar na contramão da realidade, e dar um tiro no próprio pé. O quanto isso poderá prejudicar a F-1, só saberemos daqui a algum tempo, mas pelo que vimos anteriormente, quando a FIA e FOM adotaram o limite de 12 times, e a adoção da taxa no então valor de US$ 50 milhões, isso de nada valeu, além de encher o ego dos cartolas da categoria, e inviabilizar ainda mais as chances de competição na categoria máxima do automobilismo.

            Segundo algumas informações que circulam no meio, há pelo menos dois times interessados em participar da F-1, aproveitando o novo regulamento técnico a ser adotado em 2022. Mas a exigência desta taxa de admissão neste novo valor já significa um entrave que pode levar a uma redefinição destes projetos, ou até mesmo ao seu cancelamento. E o que poderia ser a chance de termos enfim um grid de 24 carros, com 12 times na competição, acaba indo para o vinagre. E pior de tudo, com a cumplicidade dos times existentes, que acham “justa” e “necessária” tal medida, a fim de “preservar” a integridade, técnica e financeira, dos times atuais, que poderiam ser “engolidos” por novos participantes recém-chegados à competição, numa disputa que poderia ser “predatória”, e “prejudicial ao esporte”. Isso beira a hipocrisia: chegam a admitir que podem ser superados se um time recém-chegado ao campeonato se mostre mais competência e profissionalismo que eles, e e que com isso passariam vergonha, e seriam humilhados. Ora, bolas! Assumem na cara dura que não querem novos participantes, e a FIA vai lá e consente com isso no novo Pacto de Concórdia, assinado por todos os times participantes. É revoltante, porque inviabiliza a chance e oportunidade da F-1 tentar se renovar ou crescer com novos times na disputa... Uma “panelinha” na cara dura...

            Como diz o tradicional ditado, “errar é humano”, já “persistir no erro é burrice”... Outro ditado diz que se aprende com os erros cometidos, mas no caso da F-1, esta e a FIA parecem sempre decididos a ir na contramão, ignorando os erros cometidos, e continuar errando ainda mais... E depois, ainda vão se perguntar porque a categoria vem sendo cada vez menos atrativa ao público? Façam-me o favor...

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