sexta-feira, 11 de setembro de 2020

FERRARI, O MILÉSIMO GRANDE PRÊMIO

A Ferrari disputa neste domingo em Mugello (abaixo) sua milésima prova na F-1, e terá uma pintura especial comemorando o evento (acima). Infelizmente, o time mais longevo da história da categoria máxima do automobilismo não está muito no clima de comemoração.
           


            Hoje começam os treinos oficiais de uma prova completamente inédita no Campeonato Mundial de F-1. Programada em razão da pandemia do coronavírus, que inviabilizou a realização do mundial de 2020 conforme havia sido planejado, a pista de Mugello, na Itália, sedia neste final de semana o Grande Prêmio da Toscana, título para a segunda corrida em território italiano neste campeonato, e com uma marca a ser comemorada na história da categoria máxima do automobilismo: a Ferrari, equipe mais antiga da competição, completa neste final de semana nada menos do que mil corridas disputadas na Fórmula 1. É isso mesmo: 1.000 GPs disputados na categoria, cujo primeiro campeonato foi realizado em 1950, e com a Ferrari já marcando presença naquele ano, a partir da prova de Mônaco, segunda no mundial.

            Devemos lembrar que no ano passado, a própria Fórmula 1 atingiu a marca de mil corridas realizadas desde que foi disputado o primeiro GP na pista de Silverstone, na Inglaterra, em 1950. A China teve a honra de sediar a prova que marcou o milésimo GP, e a corrida deste final de semana é a corrida número 1.027 da categoria máxima do automobilismo, e com mil delas contando com uma Ferrari na competição. Uma marca a ser celebrada no mundo do esporte a motor, pois nenhuma equipe se manteve por tanto tempo na competição, sem passar por mudanças em sua história. Mas, quando me refiro a mudanças, falo de o time italiano, sediado em Maranello, ser ainda hoje o mesmo que disputou os primeiros GPs da história da F-1. Uma situação bem diferente da Alfa Romeo, outro time que, embora esteja no grid atualmente, e usar o mesmo nome, não é o mesmo que disputou e venceu o primeiro campeonato da categoria, em 1950, sendo a escuderia atual oriunda da Sauber.

            Mesmo a campeoníssima Mercedes, apesar de ser um time de fábrica oficial da marca, não é a mesma escuderia que iniciou sua participação na F-1 ainda nos anos 1950, lembrando que a marca alemã esteve ausente por décadas do grid, até retornar no início dos anos 1990 apenas como fornecedora de motor, e somente a partir de 2010 novamente como um time de competição. Muito pelo contrário, a Ferrari está presente na categoria máxima do automobilismo desde seu primeiro ano de competição, e ali tem permanecido até os dias de hoje. Um exemplo único de permanência de um time na competição do mundo do esporte a motor mundial, além de ser a única escuderia que possui uma torcida fervoroso que torce pela marca, não por seus pilotos, com raras exceções.

            Sim, a Ferrari se tornou uma verdadeira instituição italiana, e praticamente uma religião entre muitos fãs do esporte a motor. Os famosos torcedores ferraristas, os “tiffosi”, estão espalhados pelo mundo inteiro, em sua devoção a um time que transcendeu sua existência simples como uma equipe de competição, idealizada por um jovem engenheiro chamado Enzo Ferrari, que saiu da então toda-poderosa Alfa Romeo nos anos 1940 para construir seus próprios carros. Hoje, a Ferrari não é apenas a mais famosa equipe de competição de corridas do mundo, mas a marca mais sonhada de carros esporte do planeta, a ponto de seus compradores terem de passar pelo crivo da própria marca para serem “aprovados” como proprietários de um carro construído na fábrica de Maranello, que fazem o sonho e o ideal de milhares de afortunados financeiramente que desejam possuir um destes carros.

            E, a bem ou mal, a pandemia promoveu uma mudança teoricamente bem-vinda para o time “rosso”. Tivesse sido mantido o campeonato em um mundo sem a pandemia, o milésimo Grande Prêmio dos carros vermelhos seria atingido na etapa do Canadá, na América do Norte, no circuito de Montreal, que a seu favor se chama Circuito Gilles Villeneuve, um dos mais icônicos pilotos que defendeu o time italiano, e até hoje lembrado por milhares de fãs da Ferrari pelo seu espírito indomável e arrojado ao volante dos carros vermelhos, além de ser um ídolo da história do esporte canadense. Com a pandemia, e um calendário reorganizado, tivemos duas recompensas: a prova comemorativa da Ferrari acabou calhando de ser em sua terra natal, a Itália; melhor ainda, em Mugello, pista que pertence à Ferrari, e que por muitos anos os fãs acalentaram o desejo de ver ser realizado ali uma corrida de F-1. Melhor local, impossível, na teoria. Mas, infelizmente, o belo momento a ser comemorado na história da “squadra rossa” desanda completamente quando lembramos do momento complicado que vive o time italiano na atual temporada.

No Grande Prêmio de Mônaco de 1950, a primeira participação da escuderia italiana, que viria a se tornar um mito do esporte a motor mundial.

            Com um motor que no momento é o mais fraco do grid, e um carro problemático, o time que é o orgulho de milhões de torcedores no mundo inteiro está completamente fora da luta pelo título em 2020, e pior ainda, até mesmo por vitórias, dada a performance decepcionante que vem apresentando até aqui. No domingo passado, em plena pista de Monza, a Ferrari teve uma corrida que foi um verdadeiro desastre, literalmente. Largando a meio do grid, com Charles LeClerc em 13º; e um desapontado Sebastian Vettel apenas em 17º, o time rosso acabou sendo protagonista dos momentos mais dramáticos da prova, e no mal sentido da expressão. Primeiro, Vettel ficou sem freios, e seguiu reto na área de escapa da Variante Del Retiffilio, ao fim da reta dos boxes. O carro destroçou as proteções de isopor na área, felizmente sem danos ao carro, com o piloto alemão escapando de sofrer um acidente grave, e tendo chance de chegar até os boxes em segurança para abandonar a corrida. E, várias voltas depois, foi a vez de LeClerc, tentando ir além das possibilidades de seu carro, perder o controle do mesmo na Curvetta Parabolica, e atingir a proteção de pneus em alta velocidade, em uma pancada bem forte, mas felizmente sem maiores consequências para a integridade física do monegasco, que saiu andando do carro e mostrando estar bem. Um panorama completamente diferente de um ano antes, quando o mesmo LeClerc levou os “tiffosi” à loucura em Monza, ao vencer a prova com o mítico carro vermelho...

            Diante de tal descalabro de rendimento inferior frente aos rivais, foi uma bênção que a corrida italiana tenha sido disputada sem público, diante da pandemia da Covid-19. Os torcedores se sentiriam ultrajados de ver aquele time tão idolatrado passar por tal vergonha. Mas, neste final de semana, a situação será diferente. Não que a Ferrari vá mudar o seu desempenho de uma hora para a outra, mas porque a prova de Mugello será a primeira a ter algum público na atual temporada, com aproximadamente três mil torcedores nos camarotes e tribunas VIP. Mesmo assim, haverá motivos para comemorar, tanto que o time preparou uma pintura especial em seus carros, além de um uniforme especial, para comemorar a marca dos mil GPs. Quanto à esperança de um rendimento melhor dos carros vermelhos neste GP e pista inéditos no Mundial, vai depender muito de como os adversários irão se sair na pista da Toscana, inédita para todos eles, com exceção, obviamente, do time italiano.

            Mugello, além de pertencer à Ferrari, foi utilizada pela escuderia como pista de testes na época onde essa prática era liberada. Especialmente nos anos de domínio de Michael Schumacher, Mugello e Fiorano, os dois circuitos de propriedade da escuderia, viviam intensa rotina de trabalhos quase todas as semanas, com os pilotos de testes, e por vezes a dupla titular, trabalhando assiduamente para garantir as melhores performances dos carros da escuderia. Mas, com a proibição de testes instituída a partir de 2009, o circuito deixou de ser utilizado com esta função, ao menos na intensidade de trabalhos de antes. Logicamente, a Ferrari tem todas as informações da pista, mas diante da performance problemática de seu carro atual, isso não significará praticamente nenhuma vantagem diante dos concorrentes. O buraco no time italiano é bem mais embaixo, e embora até agora Mattia Binotto, o atual chefe do time, fale que não há uma crise na escuderia, é praticamente impossível encontrar outra palavra que defina a situação vivida pela equipe.

            Sebastian Vettel, o grande nome da escuderia nos últimos anos, está de saída do time, e pela porta dos fundos, depois de cometer erros crassos nos últimos anos na luta pelo título contra a arquirrival Mercedes e Lewis Hamilton. Vettel foi simplesmente dispensado pelo time sem nenhuma cerimônia, num descaso ao seu histórico de tetracampeão mundial, e de sua dedicação ao time, onde chegou em 2015 para tentar leva-lo novamente ao título mundial. Seu lugar será ocupado pelo espanhol Carlos Sainz Jr., que nesta temporada defende a McLaren/Renault. A mais nova estrela e esperança do time é o monegasco Charles LeClerc, “cria” da academia de pilotos da Ferrari, e que fez boa temporada de estréia no time italiano no ano passado, conseguindo suplantar Sebastian Vettel na pista, e marcar várias pole-positions e vencer duas corridas. Tanto que o time rosso renovou o seu contrato por várias temporadas, a fim de evitar que os concorrentes tentassem leva-lo para suas escuderias. Uma confiança em alguns aspectos muito mais motivada pelo desespero de voltar a ser campeã, o que não consegue desde 2007.

A apresentação da Ferrari na última corrida, em Monza, não foi nada memorável. Sebastian Vettel (acima) perdeu os freios e seguiu reto na primeira chicane. Já Charles LeClerc perdeu o controle do carro na Parabólica e bateu forte na proteção de pneus. Felizmente, ambos saíram ilesos dos acidentes. Só a vergonha da Ferrari não teve mesmo salvação.
           


            O pior é que a seca de títulos ainda deve perdurar. Para 2021, por medidas de contenção, o campeonato da F-1 será disputado com os mesmos carros deste ano, com apenas algumas atualizações autorizadas pela FIA. Com um carro problemático, e um motor fraco, as possibilidades de melhora de desempenho no próximo ano passam mais pelo motor do que pelo chassi. Mesmo que Maranello consiga melhorar sua unidade de potência, as deficiências do chassi deverão continuar complicando as chances de melhores resultados da equipe italiana. O próprio Binotto já declarou que a recuperação do time não acontecerá de uma hora para outra, e que os erros cometidos na área técnica e de gestão do time demorarão a serem reparados. Uma previsão que assombra os torcedores mais antigos, que lembram-se das décadas “negras” de 1980 e 1990, onde a Ferrari ficou praticamente 21 anos sem conquistar um campeonato mundial, e em vários anos ficando praticamente como coadjuvante, vendo as rivais inglesas como Williams e McLaren dando as cartas e terem sucesso. Já são 13 anos sem título, e podemos considerar 14, uma vez que uma reviravolta no atual status quo de forças do grid só deverá ser possível em 2022, com a adoção de um novo regulamento técnico, onde a Ferrari poderá tentar apresentar um carro competitivo que a leve de volta à disputa por vitórias, e quem sabe, ao título.

            E não é querendo ser chato, mas isso é “possibilidade”, e não uma certeza. Daí provavelmente o fato de Binotto não querer dar muitas esperanças aos torcedores que esperam por algum resultado “mágico” no desempenho da equipe para breve. Até pode acontecer, mas somente em circunstâncias excepcionais. Mas, é de esperança que a torcida vive, e se Pierre Gasly conseguiu uma vitória até improvável para muitos, domingo passado em Monza, ao volante da Alpha Tauri, quem sabe a Ferrari não dá sorte semelhante, e consegue ao menos emplacar um resultado mais condizente? Sonhar ainda é possível, por mais difíceis que sejam as condições atuais.

            E, mesmo vivenciando um momento complicado, a Ferrari ainda é a Ferrari. Se para os brasileiros ela significou humilhação e subserviência pela condição de “capachos” a que foram reduzidos Felipe Massa e Rubens Barrichello quando defenderam o time (mesmo esquecendo o “quase” título de Massa em 2008, mas que, como não foi campeão, dá na mesma para muitos ter sido mais um fracassado na F-1...), guiar para o time de Maranello é o sonho da grande maioria daqueles que, ainda muito cedo na vida, colocam um capacete e vão para a pista tentar a sorte no automobilismo. A mítica do “cavalinho rampante”, o símbolo da escuderia rossa, exerce um charme e uma atração indisfarçáveis, que seduzem aqueles que desejam ser alguém no esporte a motor. Um sonho, claro, que pode virar um pesadelo, como já dissertei em mais de uma vez. Se a escuderia criou heróis, é verdade que, ao longo de todas estas décadas, também já “destruiu” a carreira de vários pilotos. Guiar para Maranello é um privilégio, mas se anda na ponta da navalha mais do que em qualquer outro time da F-1.

            A ordem por lá é que a Ferrari está “acima de tudo”. Todos os pilotos correm pela glória do time italiano, e não pela sua própria. E a torcida, mais do que qualquer outra, pode tanto eleger um herói ao volante dos carros, como ser uma algoz implacável daqueles que ela considera terem desonrado a marca. Por este motivo, Gilles Villeneuve até hoje é reverenciado por lá, por ter demonstrado na pista, ainda que de forma por vezes temerária, e que seria considerada inconsequente para os dias atuais, o espírito determinado e combativo que se espera de um piloto de Maranello. Niki Lauda, por outro lado, mesmo tendo sido bicampeão pela escuderia, não escapou de ser defenestrado na época, por “entregar” o título de 1976 a James Hunt, da McLaren, por desistir de competir na prova derradeira naquele ano, no Japão, por causa da forte chuva, depois de quase ter perdido a vida no acidente sofrido na Alemanha naquela temporada. E a cobrança não vem apenas da torcida: a própria imprensa italiana reforça o ambiente de cobrança, e ajudando a criar um clima tenso em todos. A politicagem também é um problema recorrente em Maranello, e todos podemos presenciar isso nos últimos tempos, com uma falta de comando e troca de funções na escuderia que dificilmente ajuda a criar um clima de harmonia e calma que são imprescindíveis para o bom funcionamento da escuderia.

            Tudo isso é pouco para se definir o que é a Ferrari. Mas é por isso mesmo também que o time, a bem ou mal, tem que louvar o seus mil GPs de participação na F-1. Uma marca que só poderá ser igualada daqui a alguns anos, por apenas dois outros times da categoria que ainda se mantém firmes na competição. A McLaren, fundada em 1966, acumula até aqui 876 participações (contando com a corrida de domingo), podendo comemorar o seu milésimo GP apenas em 2026, se nada anormal acontecer até lá. E a Williams, por sua vez, tem até aqui, com a prova de domingo, 752 GPs disputados. Se o time, que foi vendido recentemente pela família de Sir Frank, continuar existindo com o nome de Williams, alcançará seu GP de número 1000 em algum momento da próxima década, tendo de percorrer ainda um bom caminho até lá.

            Então, o momento é de celebrar esta marca que a Ferrari está alcançando. Uma marca lendária de participações em praticamente sete décadas de competição ininterrupta na F-1, como convém a uma lenda do esporte a motor. Felicitações pelo milésimo Grande Prêmio, Ferrari!

 

 

A Indycar remarcou para este final de semana a rodada dupla de Mid-Ohio, que deveria ter sido realizada há um mês atrás, e que foi adiada devido à pandemia da Covid-19 nos Estados Unidos. Teremos então duas provas no circuito de Lexington, com prova neste sábado e neste domingo. A categoria acabou cancelando as provas em Portland e Laguna Seca, e terá apenas estas duas corridas neste mês de setembro, retornando em outubro para as corridas finais no misto de Indianápolis e no circuito de rua de São Petesburgo.

Nenhum comentário: