sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

FIM DA ERA ECCLESTONE


Bernie acabou "despejado" da direção da FOM pelo grupo Liberty Media, como ele próprio já imaginava acontecer desde o ano passado. A F-1 inicia agora sua era Pós-Ecclestone.

            O que muitos já imaginavam desde meados do ano passado, quando o grupo Liberty Media assumiu a maioria das ações da Fórmula 1, aconteceu esta semana: Bernie Ecclestone está fora da categoria máxima do automobilismo! Na verdade, até continua, mas como presidente emérito, algo que nem ele mesmo sabe para que servirá, mas que na prática, encerra o período de quase quarenta anos em que o inglês comandou de fato a F-1, e a transformou completamente durante todo este tempo. E, claro, todos se perguntam como a categoria irá se portar agora, com a direção do Liberty Media em ação, que tem planos bem ambiciosos para ela.
            Muitos esperavam que fosse ser feita uma transição gradual de comando. Recém-chegado como novo dono da categoria, não seria inteligente dispensar alguém que teve influência nos destinos da competição por quase quatro décadas e que, defeitos à parte, a entendia como ninguém, e sabia compreender todos os detalhes e nuances da F-1. Mas o próprio Ecclestone já dizia em entrevistas que não teria muito tempo mais à frente da categoria com os novos donos em ação. Ele já previa que o Liberty Media teria outras idéias, e isso acabou se confirmando. Para o lugar de Ecclestone, colocaram o norte-americano Chase Carey, homem de confiança de Greg Maffei, presidente do Liberty Media. E Chase terá a seu lado, na direção da categoria, outros dois homens: Sean Bratches se encarregará da área comercial, enquanto Ross Brawn, da área técnica.
            Bernie Ecclestone iniciou sua aventura em tempo integral na F-1 em 1972, quando assumiu a equipe Brabham, então de Ron Tauranac, e na época, já mostrando seu tino comercial e senso de oportunidade, ajudou a criar a FOCA, a Associação dos Construtores da Fórmula 1, e sendo o presidente, claro. E a partir de 1978, ele mudaria a F-1 para melhor, tornando-a o maior campeonato esportivo do mundo, atrás apenas dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo, com cifras astronômicas e lucros bilionários. Mas também a tornou pior, em alguns aspectos.
            Bernie tratou de profissionalizar a categoria. Até o fim dos anos 1970, a F-1 não exibia o elevado grau de perfeccionismo e regras rígidas que possui hoje. Até mesmo os GPs tinham duração variada, e em alguns casos, os grids de largada também tinham quantias diferentes de pilotos que largavam. E as corridas chegavam a ser disputadas às vezes aos sábados, e os contratos de televisionamento era praticamente individuais, dependendo do circuito e da corrida. Em alguns aspectos, a F-1 era bem bagunçada. Ecclestone tratou de arrumar a casa, mas não sem arrumar várias brigas, como a que a FOCA travou com a FIA em 1982, com ameaça de racha por parte das equipes, e da Federação Internacional de Automobilismo (FIA). No fim, Ecclestone, e Jean-Marie Balestre, presidente da entidade, acertaram uma trégua, e estabeleceram bases para uma convivência mútua e benéfica para todos.
Bernie Ecclestone tornou-se dono da equipe Brabham de F-1 em 1972, e fundou a FOCA no mesmo ano. Aqui, ele está ao lado de Colin Chapman, fundador e proprietário da equipe Lotus, na época.
            Bernie ficou com o poder de comercializar os direitos comerciais da F-1, e passou a transformar a categoria, levando-a para todo o mundo, potencializando os contratos com os promotores de GPs, e principalmente, com as emissoras de rádio e TV. Horários foram padronizados, mantendo sincronia com as emissoras pelo mundo todo, de forma que a maioria das corridas fosse exibida em horários mais vantajosos, e que satisfizessem também às emissoras. Negociador duro, astuto, e hábil, Ecclestone conseguiu a façanha de unir todos os envolvidos na F-1 em torno dele, tanto quanto possível, mas garantindo que boa parte desse pessoal se beneficiasse das mudanças que ele implantava. Não sem enfrentar algumas escaramuças, é verdade, mas como conseguia deixar a maioria satisfeita, e seus projetos de promoção e mudanças deram certo na imensa maioria das vezes, não havia porque reclamar. E todos sabiam que, irredutível e inflexível em boa parte das vezes, o que ele combinava com alguém era cumprido. A palavra de Bernie era mais garantida do que qualquer coisa estabelecida em contrato. Essa confiança era sagrada. O dirigente inglês sabia que uma palavra honrada era um grande benefício para garantir que todos soubessem o que esperar dele. Dentro deste aspecto, Ecclestone era transparente e honesto. Quem reclamava, era porque não prestava atenção em como lidava com ele, ou esperava outras atitudes.
            De uma categoria mundial, mas com seus ares românticos, e sem um padrão de excelência, no final dos anos 1970, Bernie tornara a F-1 um gigante comercial em menos de uma década. Trouxe de volta provas que já haviam estado no calendário, e via os interesses de fábricas e patrocinadores cada vez mais ávidos em entrar na categoria. As padronizações das transmissões, e o maior profissionalismo na gestão comercial nos diversos autódromos por onde a F-1 passava tornavam o patrocínio na F-1 algo muito vantajoso para diversas empresas, pelo modo como as corridas eram transmitidas para todo o mundo. E as equipes, passando a receber parte deste imenso lucro que começou a ser gerado, só aumentou a sua posição de liderança. Tanto que, ao fim de 1987, Bernie deixou de comandar a equipe Brabham, que seria vendida no ano seguinte, para se dedicar inteiramente à gestão dos interesses comerciais da categoria máxima do automobilismo, que demandavam cada vez mais sua atenção. E, por mais que contasse com uma equipe nos bastidores para auxiliá-lo, era Bernie quem na prática fazia o grosso do trabalho, abrindo frentes nos projetos que criava. Seu carisma, e principalmente capacidade de persuasão, além de um tino comercial extremamente apurado, capaz de perceber oportunidades onde ninguém mais via, o levaram ao topo da F-1, e a se manter nele, sem contestações, até o início deste ano.
Com Nélson Piquet, a Brabham de Ecclestone foi campeã em 1981 e 1983. Em 1988, Bernie vendeu o time e se concentrou exclusivamente em gerir a parte comercial da Fórmula 1.
            Muitos podiam não gostar de Ecclestone, mas ninguém conseguia ficar indiferente ao baixinho inglês, inclusive admirando sua capacidade de negociação, por mais rivalidade que tivessem com ele. E o grande sucesso de quase todas as empreitadas que conduziu para aumentar o tamanho da F-1 lhe garantiu sempre poder contar com a grande maioria dos participantes da categoria. Mas, para conseguir levar tudo a contento, Bernie também era implacável: suas decisões eram suas e só dele, o que não quer dizer que não ouvia opiniões dos outros. Ele ouvia tudo, pensava em tudo, e julgava o que era melhor, e mais conveniente. E, participando da competição desde o início dos anos 1970, ninguém podia dizer que ele era um estranho no ninho. Bernie apenas tomou conta do ninho, e o melhorou e ampliou incrivelmente.
            Por esses motivos e outros, é de se esperar que, em sua nova função de presidente emérito e conselheiro, os novos dirigentes que comandarão a F-1 lhe peçam opinião sobre como proceder em relação a determinados assuntos. Se Ross Brawn não é um nome novato na F-1, o mesmo não se pode dizer dos outros dois, que podem muito bem ser extremamente competentes em suas áreas, mas precisarão compreender a complexa dinâmica que rege a categoria máxima do automobilismo, o que Bernie conhece como ninguém.
            Por mais que alguns digam que o Liberty Media, ao sacar Ecclestone tão logo assumiram o controle das coisas, possa ser algo desrespeitoso e insensato, é fato também que, todo o mérito que conseguiu na gestão comercial da F-1 de 1978 para cá à parte, Bernie estava se mostrando tremendamente irredutível e inflexível em determinados pontos que poderiam ser mais úteis à categoria se pudessem ser melhor negociados. As exorbitantes taxas cobradas de promotores de GPs, que atingiram taxas ainda mais altas desde que passaram a ser bancadas por governos interessado em promover seus países através da F-1, que começou com a Malásia em 1999, está atingindo seu ponto de exaustão. A própria Malásia já não acha mais viável manter o seu GP do modo como ele é negociado, e outras provas pelo mundo já deram o seu basta, como a Turquia, Coréia do Sul, Índia, e em breve, Cingapura. Até mesmo o GP da Inglaterra cogita pular fora do barco, a partir de 2019, devido aos altos valores cobrados pela FOM com Ecclestone à frente. Seu mote era: Pagou, levou. Quem não quisesse pagar, próximo na fila, por favor. E foi assim que países como a França perderam sua corrida, a exemplo da Alemanha, que está fora do calendário nesta temporada. Provas com largo histórico na F-1, mas que não sensibilizaram Bernie quando não tiveram como pagar o que ele exigiu para a manutenção das corridas no calendário.
            Outro problema é o público-alvo da categoria. Ecclestone já declarou em tempos recentes que preferia ver um monte de bilionários velhacos curtindo a F-1 do que um monte de jovens sem dinheiro para consumir o que a categoria anuncia. E desse modo, ele deu de ombros para a renovação do público, cuja média de idade anda mais alta do que nunca. Mas também revela outro problema que o próprio Bernie criou, ao tornar a F-1 a gigante que ela é: são necessários patrocínios monstruosos para sustentar a categoria, que criou uma estrutura colossal, que hoje se tornou um poço sem fundo de recursos, indispensáveis para se competir em grau mínimo, e que muito poucos podem dispor à mão. Um erro cometido por Bernie em fins da década de 1990, quando em parceria com Max Mosley, então presidente da FIA, estabeleceu um limite de times participantes que poderiam estar na categoria, além de cobrar uma taxa altíssima, a fim de evitar “aventureiros” por lá, esquecendo-se de que foram justamente “aventureiros” como Colin Chapman, Bruce McLaren, Jack Brabam, Ken Tyrrel, Frank Williams, e muitos outros, que permitiram à F-1 se tornar o que era, nos velhos tempos. A fim de dourar o seu produto, Ecclestone o elitizou... E dali em diante, a F-1, invadida pelas montadoras, deslumbradas com a possibilidade restrita de competir na categoria, a tornaram mais gigante e custosa do que nunca. Um erro que nunca conseguiram reverter, até porque pouco se esforçaram nesse sentido de modo efetivo.
Carismático e extremamente inteligente, Ecclestone também era duro negociador, e inflexível na defesa de seus pontos de vista. Mas cumpria com sua palavra, e via isso como algo essencial para que todos soubessem o que esperar dele. Confiança era tudo.
            Com a crise econômica mundial de 2008, a F-1 ficou ainda mais insustentável. E continua sendo, apesar dos esforços despendidos no sentido de baixar os custos. Os lucros absurdamente altos que a F-1 gera são distribuídos também de modo completamente desigual, privilegiando os mais poderosos e ricos. E o gigantismo da categoria deixou a maior parte dos times vivendo no fio da navalha financeira, podendo quebrar a qualquer momento, como vemos no atual estado da Manor, que acabou de falir esta semana, e vivenciamos em 2016 com relação à Sauber, que por pouco também não fechou. Um exemplo da diferença de situação da F-1 de hoje, e do passado, pode ser vista no último time estreante da categoria. A Hass, do empresário americano Gene Hass, passou praticamente um ano inteiro só para se preparar para entrar na F-1, e teve algumas facilidades por seu proprietário ser milionário e contar com um grande império empresarial por trás. Em 1991, Eddie Jordan promoveu a entrada de seu time, que até então disputava as categorias de acesso à F-1, na própria, e numa época onde os requisitos de competição na categoria já eram elevados, mas não astronômicos como agora, ele obteve relativo sucesso para um time estreante, e sem contar com um aporte milionário como o de Gene Hass, ou o apoio oficial de uma montadora, como foi a entrada do time de Jackie Stewart em 1997, bancado pela Ford.
            Bernie Ecclestone, ao tornar a F-1 gigante como é hoje, impossibilitou iniciativas como a de Eddie Jordan, impedindo que o grid da categoria se amplie, e possa se renovar. E sua falta de atenção para com os jovens também é um pecado capital, em um mundo onde o entretenimento, sobretudo proporcionado pela internet, oferece uma competição de atenções que a F-1 não está conseguindo enfrentar a contento. E sem renovação do público, mais cedo ou mais tarde, a audiência entrará em colapso. Ela já vem declinando, lentamente é claro, mas vem declinando, com uma pequena estagnada no ano passado, mostrando que é preciso agir para tornar a F-1 novamente atrativa e interessante. E novos meios de se promover a categoria não necessários. Ecclestone continuou preso a seus métodos tradicionais, sem atualizá-los e modernizá-los à realidade, que mudou. E, como bom empreendedor e negociador, não perceber quando o mercado muda, e exige uma nova forma de ver as coisas, é uma falha capital, uma vez que se deixa de aproveitar as oportunidades, e de fomentar outras, na luta para promover o seu produto.
            A dúvida agora é se o homens do Liberty Media conseguirão renovar a F-1 e evoluí-la, da mesma forma como Ecclestone fez a partir do fim dos anos 1970. Não é um desafio simples, pois muita coisa precisará ser mudada, e nem tudo pode ser feito de imediato. Há muitos compromissos assumidos que devem ser honrados, até que se possam discutir novas bases para o andamento das coisas. É lógico que eles têm grandes planos para a categoria, do contrário, não a teriam adquirido, a um preço exorbitante de US$ 8 bilhões. Eles querem ter lucro com a operação, e a F-1 é capaz de gerar o lucro que eles esperam. A esperança é que consigam fazer isso sem comprometer a categoria. Há quem diga que as mudanças podem ser tanto benéficas quanto maléficas, e que um dos pontos fortes de Ecclestone era justamente seu pulso forte, por vezes beirando o autoritarismo total.
            Que a herança positiva do legado de Bernie Ecclestone seja honrada. Já os aspectos negativos, ninguém sentirá falta. Mas, certamente, a F-1 irá sentir a ausência do dirigente inglês, nem que seja pela sua presença nas corridas. Resta saber se, acostumado a dar as cartas por quase 40 anos, ele se acostumará à sua nova posição. Eu creio que será difícil, ainda mais por não dispor da autoridade que desfrutou por todos estes anos. Que o respeito pelas coisas positivas que fez se mantenha, embora eu ache que, do jeito que as coisas andam atualmente no mundo, por mais que se fale em respeito à memória, ao currículo, e ao legado de alguém, o que mais se faz é justamente o contrário. E, logicamente, tem muita gente que não vai sentir um pingo de saudade de Ecclestone. Que a F-1 saiba iniciar bem a era pós-Bernie Ecclestone, e saiba caminhar sem ele daqui para diante. Pelo bem do mundo do automobilismo, para o qual uma nova e atrativa F-1 seria muito mais do que bem-vinda.

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