sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

GPS DEMAIS, VAGAS DE MENOS

A pista da Bélgica garantiu presença até 2031 na F-1, mas ficará duas temporadas sem GPs, revezando com alguma outra prova. Exceção ou tendência na F-1?

            Ninguém duvida que o calendário da F-1 já atingiu o seu limite de corridas por ano. São 24 provas que vão desde início de março até o início de dezembro, lembrando que um ano tem 52 semanas, e isso dá quase uma corrida a cada duas semanas, se fôssemos levar em conta todos os meses do ano, mas a conta é mais apertada, já que pelo menos 12 semanas estão foram deste cálculo, se formos contar os meses de janeiro e fevereiro, dezembro e claro, as férias de agosto, o que deixaria, na prática, 40 semanas para acomodar estas 24 provas, e olhe lá.

            E não faltam candidatos a sediar novos Grandes Prêmios. E isso implica em um desafio nada incomum: como encaixar todas as corridas no calendário, se não há vagas para todos os interessados. Para alguém entrar, alguém terá de sair, na prática. E para tentar solucionar essa equação, a Liberty Media sugeriu a opção de “rodízio” de etapas do calendário, onde provas poderiam ser intercaladas com outras, de um ano para outro. E já temos o primeiro GP que irá entrar neste sistema, com o anúncio da extensão do contrato do GP da Bélgica, onde o icônico circuito de Spa-Francorchamps garante sua presença no calendário da categoria máxima do automobilismo até 2031, mas calma lá, eles não estarão presentes em todos os campeonatos. De acordo com a divulgação dos informes, o novo contrato garante o GP belga nas temporadas de 2026, 2027, 2029 e 2031. Mas estará fora das temporadas de 2028 e 2030, anos em que a vaga da prova belga será ocupada por algum outro GP, ainda a ser definido.

            Em tese, a idéia de revezar Gps não é ruim, desde que fosse feita com critérios adequados e justos. Mas não é o que irá prevalecer, infelizmente, com a Liberty Media dando seguimento, em ares até mais impiedosos, aos piores requisitos que Bernie Ecclestone apresentava quando na escolha de novas provas no calendário da categoria máxima do automobilismo, que se resume a uma frase simples: “Pagou, levou.” Nem é preciso dizer que com essa visão, algumas corridas simplesmente dançaram em detrimento de outras, mas Ecclestone ainda tinha um certo respeito pelo histórico do esporte, por mais controversa que seja essa afirmação. Será que a Liberty terá esse mesmo respeito, ainda que mínimo?

            É o que será preciso conferir. Não se veria problema em, tentando difundir a F-1 mundo afora, realizar provas experimentais em novos lugares, procurando avaliar o potencial de um GP nestes lugares. E, se confirmada sua viabilidade, além da atratividade para com o público e mercado local, ir sendo efetivada na competição, dentro deste sistema de rodízio. Isso poderia ser um recurso positivo para se inserir novas corridas gradualmente na competição, sem correr o risco de se colocar corridas que não gerem retorno, tanto para a Liberty quanto para os promotores locais, ou de provas que simplesmente não caiam no gosto do público e mercado locais. Já vimos várias corridas que foram criadas em tempos recentes que tão logo quanto vieram, também se foram, numa tentativa válida, mas ambiciosa, de a F-1 se estabelecer em novos mercados, mas quase sempre à custa do detrimento de outros.

Índia (acima) e Coréia do Sul (abaixo) foram pistas que movimentaram mundos e fundos para cumprir as exigências da F-1 para terem um GP, e mesmo assim, ficaram muito pouco tempo no calendário da competição, sem conseguir cativar os públicos locais.


            Provas como a da Coréia do Sul, e Índia, por exemplo, se encaixam neste panorama, com poucas corridas tendo sido realizadas por lá. Não que já não tenhamos tido corridas que se realizaram poucas vezes, com o foi o retorno da África do Sul ao calendário, em 1992 e 1993, ou as provas de Aida, no Japão, em 1994 e 1995. Mas, antigamente, o nível de comprometimento era outro, enquanto atualmente as condições são ainda mais astronômicas e extravagantes, em especial do ponto de vista financeiro. Na impossibilidade de se aumentar ainda mais o calendário (algo que, já expliquei aqui, não é tão fácil como alguns parecem não entender), podemos chegar ao extremo de leiloar as vagas da competição, com quem pagando mais, levando, e quem não tendo as mesmas condições, que vá choramingar etapas de outros certames e deixe de encher o saco. O importante é ter vagas na mão para atender aos interessados, e nada mais.

            Agora, a grande questão: quais os requisitos para se termos estas novas corridas, e como elas se encaixarão no calendário, de forma efetiva, ou de rodízio? Spa-Francorchamps já mostra que o critério não parece atender bem ao histórico da F-1, mostrando uma pista icônica, amada por equipes, pilotos, e torcedores, que já terá que dar lugar pelos próximos anos a pelo menos alguma outra corrida em pelo menos dois campeonatos. Ao mesmo tempo, se fala de realizar uma segunda corrida na Arábia Saudita, que está disposta a gastar o que for necessário para isso, como parte de seu programa de mudança da imagem do país comprando o que for necessário para tanto, em termos de eventos esportivos. Afinal, os sauditas já “compraram” o Dakar, tem a Formula-E, e querem ainda mais da F-1, então...

            Parece haver, ainda, um certo respeito pela história da F-1. Quando questionado a respeito de quais outras provas poderiam entrar neste esquema de revezamento, Stefano Domenicalli indicou que Monza seria uma prova que não entraria neste sistema, mas Ímola não teria a mesma estatura. Até aí, concordo, embora a justificativa seja mais sobre questionar o fato da Itália ter duas corridas em seu território do que propriamente pelo histórico. Mas então, como fica o fato de os Estados Unidos contarem com três corridas no presente momento da competição? E a Arábia Saudita querendo ter uma segunda corrida? O recurso de revezar palcos de corridas parece interessante na teoria, exceto pelo fato de que, até o presente momento, dar indícios de que só as etapas européias entrariam nessa brincadeira, abrindo caminho para outros países entrarem. E quais justificativas eles apresentarão quando esse momento chegar? Esse lance de respeito fica bem no discurso, mas… Bem… Seguro morreu de velho, e nesta toada, não demorariam para aplicar critérios mais subjetivos para rifarem corridas icônicas da competição. Alguém aí acreditaria em ficarmos sem etapas na Itália e na Inglaterra? Antigamente, o pessoal tinha a mesma percepção a respeito de Alemanha e França, e veja que a temporada já não conta com nenhuma corrida nestes dois países.

            Com vários interessados querendo entrar, os valores para se poder realizar uma corrida de F-1, logicamente, ficarão inflacionados, com as taxas subindo cada vez mais, e colocando em perigo provas que, mantidas por empresas privadas, terão seus limites para manter a viabilidade das corridas, podendo ficar em franca desvantagem frente a provas que, mantidas por governos de países como forma de promoção de sua nação, terão facilidades para não apenas manterem suas corridas, como até mesmo ganharem mais algumas, dependendo do apetite de cada país, e da própria Liberty Media. E os promotores privados contam com fontes de financiamento mais restritas para garantirem seus lucros, o que pode comprometer a viabilidade de manutenção da corrida, enquanto provas que são bancadas por governos podem aguentar o tranco, mesmo dando prejuízo, enquanto o governo acreditar que isso será benéfico a ele. Verdade que a F-1 já foi menos atrativa em diversos momentos, mas nos últimos anos, a gestão da Liberty Media, aliada a programas licenciados como o Drive To Survive, da Netflix, ajudaram a renovar o apelo da categoria máxima do automobilismo em vários lugares do mundo, despertando o interesse, legítimo, diga-se de passagem, de também sediarem um GP. Entre países que querem entrar na brincadeira, Tailândia e Ruanda estão na fila, mas ainda carecendo de apresentarem locais onde as corridas poderiam ser realizadas. E outros, que já participaram da competição em algum momento, como Coréia do Sul, e especialmente África do Sul, engrossam a lista de candidatos. E, inversamente, vão aumentando a lista potencial de corridas que podem ser rifadas apenas por motivos financeiros e nada mais. O histórico é uma idéia nobre para manutenção de uma corrida, mas já vimos antes que isso pode ser jogado no lixo, a depender das conveniências e circunstâncias do momento.

            Especialmente se os interessados demonstrarem estar prontos para aceitar qualquer condição para entrar no circo do calendário. E, ao que parece, tem muita gente com bala na agulha para fazer isso. E o dinheiro manda. E aí, vamos ver quanto tempo o “respeito à história” dura nessa queda de braço...

            Já vimos isso, quando em 1999, a Malásia entrou no calendário da F-1, com o suntuoso circuito de Sepang, em Kuala Lumpur, um assombro em termos de estrutura à época, com apoio do governo malaio. A FIA e a FOM gostaram do que viram, e desde então, quaisquer candidatos a sediar uma corrida de F-1 precisam literalmente vender o rim para atender às exigências da categoria para ganharem o direito de sediar um GP. E, se para isso precisarem mandar às favas etapas que, a seu ver, não pagam o suficiente para suas condições, bem… Foi bom enquanto durou…

Nurburgring, pista clássica na Alemanha, já adiantou que não tem como ser viável realizar um GP de F-1 sem correr risco de falência diante das cobranças exorbitantes.

            Alguns podem dizer que é injusto criticar a entrada de certas etapas, em lugares sem histórico de automobilismo, alegando que várias provas hoje tidas como “clássicas” poderiam nem ter chance de entrarem, se estas críticas fossem levadas em consideração. A verdade é que cada situação é um caso. Há provas que, após algum tempo, criaram suas raízes e vínculos com o país, ajudando inclusive a fomentar seu automobilismo, inspirados por terem uma das etapas da F-1. E, claro, há provas que, entrando unicamente pelo dinheiro oferecido, até se sustentam enquanto pagarem, mas não oferecem benefícios para fomentar a paixão pelo automobilismo, nem impulsionam as competições locais. E, mesmo em casos de promotores privados, isso pode acontecer.

            Barcelona, por exemplo, é um exemplo positivo de como um autódromo e uma corrida de F-1 podem ajudar a impulsionar a região economicamente. A área de Montmeló, onde foi erguido o circuito, era uma região sem grandes atrativos no início dos anos 1990, quando os espanhóis decidiram criar ali o belo circuito da Catalunha, inaugurado em 1991, e sediando o GP da Espanha desde então, substituindo a prova até então realizada em Jerez de La Frontera, e que já tinha passado por outras paragens, como Jarama, e Montjuich. E deu muito certo, com a região se desenvolvendo bastante graças aos serviços prestados ao autódromo, mas atraindo também outras empresas que nada tinham a ver com corridas. As melhorias de infraestrutura locais ajudaram a atrair serviços e indústrias para a região, hoje muito mais desenvolvida do que há 35 anos atrás. Por outro lado, na França, quando resolveram tirar a corrida de Paul Ricard, em Le Castellet, mudaram para Magny-Cours, uma cidade na região de Nevers, no centro do país, muito pouco conhecida. O intuito era que o circuito ajudasse a fomentar o desenvolvimento da região, e para isso, contaram até com a ajuda do governo francês, e à época, a Ligier, equipe francesa, até transferiu suas instalações para perto do circuito, que passou a sediar o GP da França a partir de 1991. Mas ali, meio longe de tudo, com quase nenhuma cidade de vulto por perto, o projeto não funcionou, e o autódromo não conseguiu atrair para a região nenhum desenvolvimento econômico de monta. Até mesmo a Ligier, que anos depois acabaria comprada por Alain Prost, deixou as vizinhanças do circuito, mudando sua fábrica para as imediações de Paris, onde funcionou em seus últimos anos de competição na F-1. Na década retrasada, Magny-Cours inclusive deixou o calendário, para não mais voltar, sendo que o GP da França, depois de alguns anos ausente, retornou a Paul Ricard, até sair novamente do calendário.

            E, por mais que se possa criticar a retirada de etapas da F-1 da Europa, o seu berço de nascimento, e onde se mantém ainda fiel aos seus ares originais vivenciados nos antigos “Grand Prix” de outrora, não é apenas por ser da Europa que uma etapa consegue se manter na competição. Como citado, a França já perdeu novamente o seu GP, e a Alemanha, apesar da hegemonia da Mercedes na década passada, e do tetracampeonato de Sebastian Vettel, acabou ficando sem sua corrida, quando as condições de realizarem a prova, que vinha até em alguns anos fazendo rodízio entre Hockenhein e Nurburgring, acabou pulando fora do calendário. Aliás, a administração da pista de Nurburg inclusive se pronunciou recentemente negando qualquer possibilidade de vir a sediar novamente um GP de F-1, nas condições atuais exigidas pela Liberty, alegando que os valores comprometeriam a viabilidade financeira do próprio autódromo, se fossem aceitas, para demonstrar quão difícil pode ser conseguir um GP hoje para certas pistas, se não contarem com um investimento público por trás. E, em breve, é a Holanda que cairá fora, mesmo diante do grande sucesso vivenciado por Max Verstappen. E Portugal e Turquia, apesar dos excelentes autódromos de Portimão e Istambul, estão fora do calendário, apesar de haver interesse de retornar à competição, mas desde que em bases viáveis.

Miami ganhou um GP pela sanha da Liberty Media em querer aumentar a exploração da F-1 nos EUA, que agora possuem 3 corridas no calendário.


           
Em tese, como mencionei, o revezamento de circuitos não é uma idéia ruim, desde que seja aplicada corretamente. O excesso de corridas do calendário atual pode até banalizar os GPs, que deveriam ser um evento esperado com grande entusiasmo e expectativa, por ser um evento mais especial. Antigamente, tínhamos em média 16 corridas por ano, e cada prova era ansiosamente esperada por todos. Hoje, com 24 corridas, um aumento de 50% no tamanho do calendário, temos muito mais GPs por ano, sem mencionar que, por ajustes de transporte, algumas corridas são próximas umas das outras, não apenas em termos de datas, mas também geograficamente falando. Se bem feito, o revezamento poderia permitir à F-1 visitar países que obviamente não comportariam visitas anuais da categoria, enquanto poderiam manter corridas icônicas que devem ser preservadas pelo seu valor não apenas histórico, para de ligação do povo com o universo do automobilismo. O problema está em como a Liberty Media irá fazer isso, e quais critérios irá adotar de forma a equilibrar estes interesses.

            Não é algo que irá surgir também de um momento para o outro, já que para sediar uma corrida, é preciso aprovar um grande projeto demonstrando a viabilidade da empreitada, para não mencionar a construção de seu palco, um autódromo, ou um circuito de rua, e providenciar que tudo esteja pronto e com a logística preparada para atender a todas as necessidades que um evento destes demanda. Algo que, mesmo com os trabalhos de preparação tendo início este ano, vai levar pelo menos dois a três anos para ser viabilizado. Mas, o fato da etapa da Bélgica já estar sendo programadas para não ocorrer em pelo menos duas temporadas até 2031 já indica que estão sendo feitos esforços neste sentido, e que em breve poderemos ver quais serão as novas corridas que farão uso deste recurso, às custas de Spa-Francorchamps. Dos circuitos atuais, poucos tem contrato a vencer nos próximos anos, como Zandvoort (2026), Ímola (2025), México (2025), ou Las Vegas (2025), enquanto outros já estão com renovação garantida por mais uma década, como Silverstone (2034), Bahrein (2036), e Austrália (2035), de modo que será preciso esperar um bom tempo até que essa idéia do revezamento pegue tração, ou quem sabe, possa até vir a ser descartada, ou minimizada, dependendo de como os interessados se comportem a respeito das condições, que hoje são de um jeito, mas amanhã poderão ser de outro. Portanto, vamos aguardar o desenrolar dos acontecimentos, e esperar que as notícias possam ser as mais positivas possíveis a respeito.

Kyalami, na África do Sul, quer voltar ao calendário da F-1, sendo um dos candidatos que podem brigar por uma vaga na competição.

 

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