sexta-feira, 26 de julho de 2019

QUEBRAR OU NÃO QUEBRAR?

No mutilado circuito de Hockenhein (acima), iniciam-se hoje os treinos para o Grande Prêmio da Alemanha de F-1, onde no ano passado Sebastian Vettel perdeu uma vitória certa ao bater sozinho quando liderava (abaixo).

            Hoje começam os treinos oficiais para a etapa da Alemanha, no circuito de Hockenhein, e a perspectiva é se Ferrari ou Red Bull conseguirão incomodar, ou não, o favoritismo da Mercedes. Por ora, o mais indicado é ver quem será a segunda força, um duelo bem mais parelho, onde o time de Maranello parece ter uma pequena vantagem sobre a equipe dos energéticos, mas não significativa. Os dois times tem duas forças a serem consideradas: Max Verstappen e Charles LeClerc, considerados estrelas da nova geração de talentos da F-1. Mas também possuem duas incógnitas, como Sebastian Vettel e Pirre Gasly. O alemão retorna à pista de seu país, onde no ano passado bateu bisonhamente enquanto liderava a prova, entregando a vitória ao arquirrival Lewis Hamilton. Problemas com a pista molhada pela chuva à parte, de lá para cá tudo pareceu desandar para Vettel, com exceção da etapa da Bélgica do ano passado, palco de sua última vitória na categoria. Já Gasly enfrenta o processo de fritura prematura desencadeado por Helmut Marko, responsável por acabar com a carreira de 9 entre 10 pilotos que competem pela Red Bull na Fórmula 1, e que tem tudo para engrossar a lista de “vítimas”.
            Enquanto os carros não entram na pista para o primeiro treino livre, prefiro dissertar sobre o que Jean Todt andou falando esta semana, sobre os carros “inquebráveis” da F-1 estarem contribuindo negativamente para o show. A discussão nas redes sociais e fóruns mundo afora teve opiniões a favor e contra a fala do dirigente, mas aqui eu faço a minha opinião do assunto, que acho uma tremenda hipocrisia do mandatário da FIA, porque ele, como presidente da entidade que comanda o automobilismo mundial, tem muita culpa no cartório por este panorama atual que temos na F-1, e que teve várias oportunidades para corrigir tal rumo, mas só o piorou ainda mais. E o principal motivo para isso é as ridículas regras que limitam o número de componentes que os times podem usar durante a temporada, do qual o mais falado é o número estúpido de cada piloto poder usar apenas 3 unidades de potência por ano no campeonato. No caso do uso de uma 4º unidade ou mais do que isso, o piloto é punido com a perda de posições no grid. Mas não são só as unidades de potência: câmbios também sofrem dessa limitação, com as mesmas penalidades para quem exceder o limite de conjuntos, e por aí vai.
            Os times, lógico, não querem sofrer punições por causa disso, portanto, investiram pesado na confecção de componentes cada vez mais resistentes e duráveis, para fazer com que seus bólidos cumpram o número de corridas necessário para não extrapolarem a quantidade de equipamentos permitidos. O efeito colateral é que, salvo acidentes, quase não há abandonos hoje em dia na F-1, e ainda vemos especialmente corridas onde ninguém abandona. Daí a dizer que carros que “quebrem” mais melhorariam a competição, são outros quinhentos, mas certamente ajudariam a quebrar um pouco dessa monotonia, uma vez que hoje os times conseguem controlar tanto a vida útil de seus componentes, que isso também se tornou um grande gasto em investimento das escuderias pela maior vida útil possível de seus equipamentos, sem comprometimento da performance. Mas também, significa, em muitos casos, que os pilotos não extraem a fundo tudo o que seus carros podem render, com efeitos variados.
            A limitação de equipamentos já é algo antigo na F-1. No início dos anos 1990, tentando equacionar um pouco o desnível orçamentário entre os times de ponta e as demais equipes do grid, começou-se a implantar alguns limites para tentar conter os gastos. Só para se ter uma idéia, nos anos 1980, os times de ponta tinham motores especiais para usar somente nos treinos de classificação. Eram unidades muito mais fortes que as de corrida, mas com vida útil extremamente curta. Basicamente, com um pouco de exagero, os times usavam até um motor por treino, que depois era jogado fora. Para a corrida, eles trocavam o propulsor, que geralmente também era descartado depois da corrida. Isso significava que, entre treinos, classificações e corridas, um único piloto de um time de ponta podia usar mais de 50 motores por ano, um gasto que obviamente times menores não tinham como bancar. Com os pneus, era quase a mesma coisa: tínhamos os pneus de classificação, que tinham muito mais aderência que os compostos convencionais, mas duravam quando muito 5 voltas. Era uma tentativa, e só. Para a seguinte, usava-se outro jogo de compostos, e assim por diante. E, da mesma maneira que os motores, os times pequenos não podiam gastar tanto assim como pneus, para não mencionar que nem todos eles também tinham acesso a tais equipamentos, dependendo do previsto no contrato de fornecimento e na quantia paga ao fornecedor. Isso também era válido para componentes como câmbio, que também tinham durabilidade por vezes reduzida, devido ao esforço intenso com a máxima performance a ser extraída, e por aí vai.
GP da Áustria deste ano: todos os carros que largaram chegaram ao final da corrida, sem um único abandono.
            A idéia de limitar equipamentos era tentar diminuir este desnível, que no início dos anos 1990 começava a comprometer a saúde financeira e as chances de sobrevivência de vários times. Logo, os pilotos passaram a dispor apenas de 7 jogos de pneus por fim de semana de GP, além de serem proibidos os compostos especiais de classificação. Se os times menores já viviam usando o mínimo possível o número de compostos de pneus para não extrapolar nas despesas, na teoria os times de ponta, até então acostumados a “queimar” um jogo de compostos por treino, sentiriam o desafio de ter de poupar os compostos, enquanto os times menores já estariam habituados a isso. E na década passada, isso acabou estendido também a outros equipamentos, como câmbio, motores, etc. O objetivo era conter custos, e fazer os times de ponta terem de se virar sem a quantidade absurda de certos equipamentos que utilizavam até então sem dor na consciência financeira, enquanto aqueles que não podiam pagar por tanto contavam no dedo as peças disponíveis no orçamento para a temporada. Novamente, o argumento é que os times de ponta, tendo de economizar seus componentes, perderiam parte de sua performance, enquanto quem sempre viveu com o dinheiro contado não sentiria isso. Em tese, o desempenho dos times grandes cairia, enquanto os médios e pequenos, mais equiparados, poderiam ter melhor chance de competir.
            Mas, se tem uma coisa que os engenheiros e times da F-1 sabem fazer como ninguém é driblar os percalços impostos pelo regulamento, quando tentam restringir a performance. Os times de ponta conseguiram não apenas se adaptar a estas restrições de equipamentos, como continuaram mantendo sua performance superior aos demais times médios e pequenos. E começaram a investir pesado para aumentar significativamente a durabilidade de seus componentes, de modo que estes aguentassem o tranco do número de provas exigido pelo regulamento, sem que o time sofresse punição. Na prática, ninguém ficaria sem ter equipamento, mas as punições, em uma categoria que ficava cada vez mais difícil conseguir ultrapassagens, perder posições no grid de largada por quebra de componentes poderia comprometer o esforço de todo o fim de semana, daí então, os esforços em tornar os carros os mais “inquebráveis” possíveis, receita que foi sendo seguida por todas as escuderias.
            Inicialmente, a idéia destas limitações de equipamentos disponíveis por temporada até ajudou a reduzir custos, mas foi um alívio momentâneo, pois os times passaram a direcionar os recursos que eram gastos na fabricação de um grande número de componentes na pesquisa de materiais mais duráveis e eficientes. Da mesma maneira, a proibição de testes durante a temporada, instituída em 2009 para reduzir os custos astronômicos de competição da F-1, ajudou a reduzir os gastos das escuderias em um primeiro momento, mas a crise econômica também reduziu o número de empresas dispostas a se aventurar em patrocínio no automobilismo, de modo que o dinheiro disponível encolheu, e deu meio que empate. Mas, alguns anos depois, os gastos cresceram novamente, com as escuderias investindo pesado em simuladores virtuais, como substitutos para os testes de pista, de modo que hoje os times preferem “testar” no simulador no que na pista.
Antigamente, os carros de F-1 quebravam bem mais, o que ajudava em alguns casos a variar os resultados das corridas.
            Outro ponto que certamente a limitação de equipamentos se faz sentir é nos finais de semana de GPs. Por mais resistentes e duráveis que os bólidos de competição se tornaram, os times, por precaução, andam apenas o suficiente no final de semana. Assim, nos treinos livres, eles tentam andar o mínimo possível, para não desgastar o carro e seus sistemas. Da mesma maneira, os pneus também tem de ser conservados, sob o risco de o piloto não ter compostos para usar na corrida. Tudo isso acaba impactando na performance, pois alguns times poderiam andar melhor se pudessem andar mais com seus equipamentos nos finais de semana de GP. Mas como fazer isso, se precisam poupar o número de componentes disponíveis? O que deveria ser um limitador de gastos para oferecer melhores condições de competição aos times, do ponto de vista financeiro, virou um tiro pela culatra, pois vários times não andam o que poderiam, para poupar equipamento. E, logicamente, isso acontece mais com os times menos competitivos, que poderiam melhorar seu desempenho caso pudessem treinar mais e aprimorar seus acertos para os carros.
            Lógico que, com mais equipamentos disponíveis, os times de ponta também se aproveitariam disso, mas o problema consiste mesmo em aprofundar o erro, ao invés de minimizá-lo. Tomemos como exemplo o caso dos motores: na década passada, quando foi instituído a limitação de propulsores, os times tinham direito a apenas 8 unidades por temporada, por piloto. E com o desenvolvimento das unidades “congelado”, ou seja, os fabricantes não poderiam evoluir seus motores durante as temporadas, e até entre elas. De início, cada motor tinha que durar X corridas, para atingir o número ideal de provas da temporada. Um motor que quebrasse antes disso submetia o piloto a punição de perda de posições no grid. Depois, ao menos evoluíram a regra, estabelecendo que o limite era para toda a temporada, e o time tinha liberdade para gerenciar o uso destes propulsores, o que era algo mais inteligente de se fazer, sem penalizar tanto a competição. Mas aí, veio a era das unidades turbo híbridas, e o que vimos: a limitação de motores ficou ainda pior, reduzindo para 5 unidades por temporada, em um momento onde o número de GPs crescia, e a introdução da nova tecnologia das unidades de potência era algo que exigia maiores estudos de durabilidade e performance. E ainda, com “congelamento” do desenvolvimento das unidades propulsoras, foi mais um tiro no pé proporcionado pela FIA.
            E como pau que nasce torto tem tendência a permanecer torto, a FIA deu mais dois tiros no pé neste quesito. O primeiro, ao reduzir de 5 para 4 o número de unidades. E o segundo, é o que vemos atualmente, com o número de unidades de potência reduzido a míseras 3 por temporada, por piloto. Eles acabaram com a regra do “congelamento” do desenvolvimento, mas com apenas 3 unidades podendo ser utilizadas por ano, sem penalização, este desenvolvimento livre também não é livre, pois não se pode modificar certas partes do motor sem infringir a regra de ele ser considerado uma unidade nova.
            Se é verdade que a regra é para todos, e a Mercedes se deu melhor que todo mundo nesta era das unidades híbridas, o contrário se deu com Renault, e principalmente a Honda, que poderiam ter tido um desenvolvimento muito melhor, contribuindo para a melhoria da competição, se não tivessem ficado “presas” aos limites do regulamento. Mesmo assim, perde-se a conta de quantas punições a McLaren recebeu por quebras da Honda nas temporadas de 2015 e 2016, pela fragilidade do equipamento, potencializada pelas proibições de se desenvolver o equipamento, cujas falhas poderiam ter sido sanadas mais rápido se fosse permitido desenvolver as unidades com liberdade. Lógico que, com desenvolvimento livre, a Mercedes poderia ser ainda mais eficiente com suas unidades de potência, mas certamente Renault e Honda não pagariam tanto mico como fizeram, e os times que utilizavam suas unidades poderiam ter tido um desempenho menos ruim.
Durabilidade dos carros colocava à prova o talento dos pilotos mais arrojados, que precisavam saber conservar seu equipamento, enquanto os pilotos mais técnicos e cerebrais costumavam levar vantagem neste quesito, equilibrando a competição com diferentes estilos de pilotagem nas corridas.
            Mas a FIA avalizou este regulamento, e leia-se, Jean Todt, presidente da entidade, concordou com estas regras. Vir reclamar agora dos efeitos potencialmente negativos de algo que ele ajudou a implantar é ser muito cara de pau, especialmente quando não tenho visto nenhum esforço para corrigir estes limites de uso de equipamentos por temporada.
            E quando falo de corrigir isso, é claro que não significa voltar à liberdade ilimitada que víamos nos anos 1980. Mas impor limites mais condizentes, que permitam aos times serem mais agressivos na utilização de seus equipamentos, ajudando a melhorar a competição. Ao invés de 7 jogos de pneus, por que não mudar o limite para 10 jogos por piloto no final de semana de GP? Pode parecer pouco, mas já faz bastante diferença. E no caso dos motores, porque não estabelecer um limite de 10 unidades por ano? Isso permitiria aos times rodar mais com cada motor, e os pilotos poderem exigir mais dos carros, e das próprias unidades de potência. Não se trata de instituir uma quebradeira generalizada, mas de acabar com algumas neuroses que levaram os times a produzir carros cada vez mais confiáveis. Afrouxar os limites de equipamentos deixaria times e pilotos mais livres para abusar na pista. Se os carros vão quebrar mais, isso é incerto.
            Nos velhos tempos, o que ajudava os resultados serem um pouco mais variados era que a fiabilidade dos equipamentos era variável e instável. Mesmo os melhores carros poderiam quebrar, e às vezes, isso permitia a alguns pilotos e times alcançarem resultados que normalmente não obteriam. Dizer que carros que quebram pioram o show da competição é uma meia-verdade: há momentos em que podem mesmo jogar contra a disputa, mas também podem jogar a favor, favorecendo os pilotos que sabem ser rápidos sem desgastar seus carros. Na verdade, não é muito diferente dos dias de hoje, onde todos andam abaixo do limite possível para seus carros e equipamentos, mas alguns pilotos conseguem ter mais constância e performance do que outros, e com estilos diferentes de condução, entre pilotos arrojados, e cerebrais. Mas carros com um pouco menos de confiabilidade, com os times podendo explorar mais seus limites, por poderem usar mais unidades de sistemas, poderiam potencializar estas diferenças, e oferecer ao público a oportunidade de verem pilotos competindo com estilos mais pronunciados, quem sabe? E não ver todo mundo por vezes em uma procissão, sem forçarem o equipamento pela necessidade absurda de não desgastá-lo além do necessário.
            Em um momento onde a F-1, junto com a FIA, pretende estabelecer o novo regulamento técnico que vigorará a partir de 2021, a oportunidade para se corrigir várias regras e limites esdrúxulos existentes nas regras atuais da categoria máxima do automobilismo é uma oportunidade que não pode ser desperdiçada. Deve-se procurar o melhor entendimento possível para se estabelecer regras que não comprometam a saúde financeira dos times, mas ao mesmo tempo, não impor limites absurdos, de forma a permitir que a competição possa se dar em um equilíbrio saudável e sem camisas de força. Se vão conseguir, só saberemos mais adiante. Mas torço para que consigam fazer o melhor regulamento possível para todos, a nível técnico e esportivo. Amém!

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