Bernie acabou "despejado" da direção da FOM pelo grupo Liberty Media, como ele próprio já imaginava acontecer desde o ano passado. A F-1 inicia agora sua era Pós-Ecclestone. |
O que muitos já
imaginavam desde meados do ano passado, quando o grupo Liberty Media assumiu a
maioria das ações da Fórmula 1, aconteceu esta semana: Bernie Ecclestone está
fora da categoria máxima do automobilismo! Na verdade, até continua, mas como
presidente emérito, algo que nem ele mesmo sabe para que servirá, mas que na
prática, encerra o período de quase quarenta anos em que o inglês comandou de
fato a F-1, e a transformou completamente durante todo este tempo. E, claro,
todos se perguntam como a categoria irá se portar agora, com a direção do
Liberty Media em ação, que tem planos bem ambiciosos para ela.
Muitos esperavam que
fosse ser feita uma transição gradual de comando. Recém-chegado como novo dono
da categoria, não seria inteligente dispensar alguém que teve influência nos
destinos da competição por quase quatro décadas e que, defeitos à parte, a
entendia como ninguém, e sabia compreender todos os detalhes e nuances da F-1.
Mas o próprio Ecclestone já dizia em entrevistas que não teria muito tempo mais
à frente da categoria com os novos donos em ação. Ele já previa que o Liberty
Media teria outras idéias, e isso acabou se confirmando. Para o lugar de
Ecclestone, colocaram o norte-americano Chase Carey, homem de confiança de Greg
Maffei, presidente do Liberty Media. E Chase terá a seu lado, na direção da
categoria, outros dois homens: Sean Bratches se encarregará da área comercial, enquanto
Ross Brawn, da área técnica.
Bernie Ecclestone
iniciou sua aventura em tempo integral na F-1 em 1972, quando assumiu a equipe
Brabham, então de Ron Tauranac, e na época, já mostrando seu tino comercial e
senso de oportunidade, ajudou a criar a FOCA, a Associação dos Construtores da
Fórmula 1, e sendo o presidente, claro. E a partir de 1978, ele mudaria a F-1
para melhor, tornando-a o maior campeonato esportivo do mundo, atrás apenas dos
Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo, com cifras astronômicas e lucros
bilionários. Mas também a tornou pior, em alguns aspectos.
Bernie tratou de
profissionalizar a categoria. Até o fim dos anos 1970, a F-1 não exibia o
elevado grau de perfeccionismo e regras rígidas que possui hoje. Até mesmo os
GPs tinham duração variada, e em alguns casos, os grids de largada também
tinham quantias diferentes de pilotos que largavam. E as corridas chegavam a
ser disputadas às vezes aos sábados, e os contratos de televisionamento era
praticamente individuais, dependendo do circuito e da corrida. Em alguns
aspectos, a F-1 era bem bagunçada. Ecclestone tratou de arrumar a casa, mas não
sem arrumar várias brigas, como a que a FOCA travou com a FIA em 1982, com
ameaça de racha por parte das equipes, e da Federação Internacional de
Automobilismo (FIA). No fim, Ecclestone, e Jean-Marie Balestre, presidente da
entidade, acertaram uma trégua, e estabeleceram bases para uma convivência
mútua e benéfica para todos.
Bernie Ecclestone tornou-se dono da equipe Brabham de F-1 em 1972, e fundou a FOCA no mesmo ano. Aqui, ele está ao lado de Colin Chapman, fundador e proprietário da equipe Lotus, na época. |
Bernie ficou com o
poder de comercializar os direitos comerciais da F-1, e passou a transformar a
categoria, levando-a para todo o mundo, potencializando os contratos com os
promotores de GPs, e principalmente, com as emissoras de rádio e TV. Horários
foram padronizados, mantendo sincronia com as emissoras pelo mundo todo, de
forma que a maioria das corridas fosse exibida em horários mais vantajosos, e
que satisfizessem também às emissoras. Negociador duro, astuto, e hábil,
Ecclestone conseguiu a façanha de unir todos os envolvidos na F-1 em torno
dele, tanto quanto possível, mas garantindo que boa parte desse pessoal se
beneficiasse das mudanças que ele implantava. Não sem enfrentar algumas
escaramuças, é verdade, mas como conseguia deixar a maioria satisfeita, e seus
projetos de promoção e mudanças deram certo na imensa maioria das vezes, não
havia porque reclamar. E todos sabiam que, irredutível e inflexível em boa
parte das vezes, o que ele combinava com alguém era cumprido. A palavra de
Bernie era mais garantida do que qualquer coisa estabelecida em contrato. Essa
confiança era sagrada. O dirigente inglês sabia que uma palavra honrada era um grande
benefício para garantir que todos soubessem o que esperar dele. Dentro deste
aspecto, Ecclestone era transparente e honesto. Quem reclamava, era porque não
prestava atenção em como lidava com ele, ou esperava outras atitudes.
De uma categoria
mundial, mas com seus ares românticos, e sem um padrão de excelência, no final
dos anos 1970, Bernie tornara a F-1 um gigante comercial em menos de uma
década. Trouxe de volta provas que já haviam estado no calendário, e via os
interesses de fábricas e patrocinadores cada vez mais ávidos em entrar na
categoria. As padronizações das transmissões, e o maior profissionalismo na
gestão comercial nos diversos autódromos por onde a F-1 passava tornavam o
patrocínio na F-1 algo muito vantajoso para diversas empresas, pelo modo como
as corridas eram transmitidas para todo o mundo. E as equipes, passando a
receber parte deste imenso lucro que começou a ser gerado, só aumentou a sua
posição de liderança. Tanto que, ao fim de 1987, Bernie deixou de comandar a
equipe Brabham, que seria vendida no ano seguinte, para se dedicar inteiramente
à gestão dos interesses comerciais da categoria máxima do automobilismo, que
demandavam cada vez mais sua atenção. E, por mais que contasse com uma equipe
nos bastidores para auxiliá-lo, era Bernie quem na prática fazia o grosso do
trabalho, abrindo frentes nos projetos que criava. Seu carisma, e
principalmente capacidade de persuasão, além de um tino comercial extremamente
apurado, capaz de perceber oportunidades onde ninguém mais via, o levaram ao
topo da F-1, e a se manter nele, sem contestações, até o início deste ano.
Com Nélson Piquet, a Brabham de Ecclestone foi campeã em 1981 e 1983. Em 1988, Bernie vendeu o time e se concentrou exclusivamente em gerir a parte comercial da Fórmula 1. |
Muitos podiam não
gostar de Ecclestone, mas ninguém conseguia ficar indiferente ao baixinho
inglês, inclusive admirando sua capacidade de negociação, por mais rivalidade
que tivessem com ele. E o grande sucesso de quase todas as empreitadas que
conduziu para aumentar o tamanho da F-1 lhe garantiu sempre poder contar com a
grande maioria dos participantes da categoria. Mas, para conseguir levar tudo a
contento, Bernie também era implacável: suas decisões eram suas e só dele, o
que não quer dizer que não ouvia opiniões dos outros. Ele ouvia tudo, pensava
em tudo, e julgava o que era melhor, e mais conveniente. E, participando da
competição desde o início dos anos 1970, ninguém podia dizer que ele era um
estranho no ninho. Bernie apenas tomou conta do ninho, e o melhorou e ampliou
incrivelmente.
Por esses motivos e
outros, é de se esperar que, em sua nova função de presidente emérito e
conselheiro, os novos dirigentes que comandarão a F-1 lhe peçam opinião sobre
como proceder em relação a determinados assuntos. Se Ross Brawn não é um nome
novato na F-1, o mesmo não se pode dizer dos outros dois, que podem muito bem
ser extremamente competentes em suas áreas, mas precisarão compreender a
complexa dinâmica que rege a categoria máxima do automobilismo, o que Bernie
conhece como ninguém.
Por mais que alguns
digam que o Liberty Media, ao sacar Ecclestone tão logo assumiram o controle
das coisas, possa ser algo desrespeitoso e insensato, é fato também que, todo o
mérito que conseguiu na gestão comercial da F-1 de 1978 para cá à parte, Bernie
estava se mostrando tremendamente irredutível e inflexível em determinados
pontos que poderiam ser mais úteis à categoria se pudessem ser melhor negociados.
As exorbitantes taxas cobradas de promotores de GPs, que atingiram taxas ainda
mais altas desde que passaram a ser bancadas por governos interessado em
promover seus países através da F-1, que começou com a Malásia em 1999, está
atingindo seu ponto de exaustão. A própria Malásia já não acha mais viável
manter o seu GP do modo como ele é negociado, e outras provas pelo mundo já
deram o seu basta, como a Turquia, Coréia do Sul, Índia, e em breve, Cingapura.
Até mesmo o GP da Inglaterra cogita pular fora do barco, a partir de 2019,
devido aos altos valores cobrados pela FOM com Ecclestone à frente. Seu mote
era: Pagou, levou. Quem não quisesse pagar, próximo na fila, por favor. E foi
assim que países como a França perderam sua corrida, a exemplo da Alemanha, que
está fora do calendário nesta temporada. Provas com largo histórico na F-1, mas
que não sensibilizaram Bernie quando não tiveram como pagar o que ele exigiu
para a manutenção das corridas no calendário.
Outro problema é o
público-alvo da categoria. Ecclestone já declarou em tempos recentes que
preferia ver um monte de bilionários velhacos curtindo a F-1 do que um monte de
jovens sem dinheiro para consumir o que a categoria anuncia. E desse modo, ele
deu de ombros para a renovação do público, cuja média de idade anda mais alta
do que nunca. Mas também revela outro problema que o próprio Bernie criou, ao
tornar a F-1 a gigante que ela é: são necessários patrocínios monstruosos para
sustentar a categoria, que criou uma estrutura colossal, que hoje se tornou um
poço sem fundo de recursos, indispensáveis para se competir em grau mínimo, e
que muito poucos podem dispor à mão. Um erro cometido por Bernie em fins da
década de 1990, quando em parceria com Max Mosley, então presidente da FIA,
estabeleceu um limite de times participantes que poderiam estar na categoria,
além de cobrar uma taxa altíssima, a fim de evitar “aventureiros” por lá,
esquecendo-se de que foram justamente “aventureiros” como Colin Chapman, Bruce
McLaren, Jack Brabam, Ken Tyrrel, Frank Williams, e muitos outros, que
permitiram à F-1 se tornar o que era, nos velhos tempos. A fim de dourar o seu
produto, Ecclestone o elitizou... E dali em diante, a F-1, invadida pelas
montadoras, deslumbradas com a possibilidade restrita de competir na categoria,
a tornaram mais gigante e custosa do que nunca. Um erro que nunca conseguiram
reverter, até porque pouco se esforçaram nesse sentido de modo efetivo.
Com a crise econômica
mundial de 2008, a F-1 ficou ainda mais insustentável. E continua sendo, apesar
dos esforços despendidos no sentido de baixar os custos. Os lucros absurdamente
altos que a F-1 gera são distribuídos também de modo completamente desigual,
privilegiando os mais poderosos e ricos. E o gigantismo da categoria deixou a
maior parte dos times vivendo no fio da navalha financeira, podendo quebrar a
qualquer momento, como vemos no atual estado da Manor, que acabou de falir esta
semana, e vivenciamos em 2016 com relação à Sauber, que por pouco também não
fechou. Um exemplo da diferença de situação da F-1 de hoje, e do passado, pode
ser vista no último time estreante da categoria. A Hass, do empresário
americano Gene Hass, passou praticamente um ano inteiro só para se preparar
para entrar na F-1, e teve algumas facilidades por seu proprietário ser
milionário e contar com um grande império empresarial por trás. Em 1991, Eddie
Jordan promoveu a entrada de seu time, que até então disputava as categorias de
acesso à F-1, na própria, e numa época onde os requisitos de competição na
categoria já eram elevados, mas não astronômicos como agora, ele obteve
relativo sucesso para um time estreante, e sem contar com um aporte milionário
como o de Gene Hass, ou o apoio oficial de uma montadora, como foi a entrada do
time de Jackie Stewart em 1997, bancado pela Ford.
Bernie Ecclestone, ao
tornar a F-1 gigante como é hoje, impossibilitou iniciativas como a de Eddie
Jordan, impedindo que o grid da categoria se amplie, e possa se renovar. E sua
falta de atenção para com os jovens também é um pecado capital, em um mundo
onde o entretenimento, sobretudo proporcionado pela internet, oferece uma
competição de atenções que a F-1 não está conseguindo enfrentar a contento. E
sem renovação do público, mais cedo ou mais tarde, a audiência entrará em
colapso. Ela já vem declinando, lentamente é claro, mas vem declinando, com uma
pequena estagnada no ano passado, mostrando que é preciso agir para tornar a
F-1 novamente atrativa e interessante. E novos meios de se promover a categoria
não necessários. Ecclestone continuou preso a seus métodos tradicionais, sem
atualizá-los e modernizá-los à realidade, que mudou. E, como bom empreendedor e
negociador, não perceber quando o mercado muda, e exige uma nova forma de ver
as coisas, é uma falha capital, uma vez que se deixa de aproveitar as
oportunidades, e de fomentar outras, na luta para promover o seu produto.
A dúvida agora é se o
homens do Liberty Media conseguirão renovar a F-1 e evoluí-la, da mesma forma
como Ecclestone fez a partir do fim dos anos 1970. Não é um desafio simples,
pois muita coisa precisará ser mudada, e nem tudo pode ser feito de imediato. Há
muitos compromissos assumidos que devem ser honrados, até que se possam
discutir novas bases para o andamento das coisas. É lógico que eles têm grandes
planos para a categoria, do contrário, não a teriam adquirido, a um preço exorbitante
de US$ 8 bilhões. Eles querem ter lucro com a operação, e a F-1 é capaz de
gerar o lucro que eles esperam. A esperança é que consigam fazer isso sem
comprometer a categoria. Há quem diga que as mudanças podem ser tanto benéficas
quanto maléficas, e que um dos pontos fortes de Ecclestone era justamente seu
pulso forte, por vezes beirando o autoritarismo total.
Que a herança positiva
do legado de Bernie Ecclestone seja honrada. Já os aspectos negativos, ninguém
sentirá falta. Mas, certamente, a F-1 irá sentir a ausência do dirigente
inglês, nem que seja pela sua presença nas corridas. Resta saber se, acostumado
a dar as cartas por quase 40 anos, ele se acostumará à sua nova posição. Eu
creio que será difícil, ainda mais por não dispor da autoridade que desfrutou
por todos estes anos. Que o respeito pelas coisas positivas que fez se
mantenha, embora eu ache que, do jeito que as coisas andam atualmente no mundo,
por mais que se fale em respeito à memória, ao currículo, e ao legado de
alguém, o que mais se faz é justamente o contrário. E, logicamente, tem muita
gente que não vai sentir um pingo de saudade de Ecclestone. Que a F-1 saiba
iniciar bem a era pós-Bernie Ecclestone, e saiba caminhar sem ele daqui para
diante. Pelo bem do mundo do automobilismo, para o qual uma nova e atrativa F-1
seria muito mais do que bem-vinda.