O Dakar 2021 mais uma vez foi disputado unicamente na Arábia Saudita, a exemplo do ano passado. |
Os loucos do deserto aceleraram novamente em mais uma edição do Dakar, o maior rali do mundo, que abriu as atividades do mundo do esporte a motor neste ano de 2021. Uma edição que já começou mais complicada do que nunca, já que o mundo continua vivendo sob a ameaça da pandemia da Covid-19, o que impactou na participação de muitos competidores, além de provocar medidas de restrição por parte dos organizadores, e do governo da Arábia Saudita, onde a prova foi realizada pelo segundo ano consecutivo. Havia a expectativa de incluir os países vizinhos no percurso do rali, mas a pandemia em curso obrigou a manter a prova exclusivamente em território saudita. Só chegar ao país árabe já foi um desafio para muitos competidores, diante das restrições de viagens internacionais, e dos protocolos de segurança obrigatórios, como testes frequentes, além de quarentena mínima de 48 horas ao chegar a solo saudita. Foi implantada também uma verdadeira operação de guerra, com cerca de 18 aviões fretados pela organização da competição, com autorizações especiais dadas pelos árabes para garantir que os competidores e equipes chegassem ao país e pudessem entrar, diante das restrições de viagem e fechamento geral das fronteiras por causa da pandemia.
Foram 12 etapas, disputadas entre os dias 3 a 15 de janeiro, com parada para descanso no dia 9, em um percurso total de 7.646 quilômetros, dos quais 4.767 quilômetros nos trechos cronometrados. Inicialmente, a prova contaria com nada menos do que 321 veículos participantes, mas parte deles não conseguiu passar pela vistoria técnica antes da prova, o que resultou na baixa de nada menos 35 deles, que acabaram ficando de fora da competição antes mesmo da largada. Tivemos então 286 veículos, divididos em 61 UTVs e protótipos leves, 64 carros, 101 motos, 16 quadriciclos e 44 caminhões. E lá foram os dakaristas para a largada, e muitos percalços e areia pela frente, em etapas onde todos foram colocados à prova mais uma vez. Os “loucos do deserto”, como foram apelidados por muitos, trataram de pisar fundo novamente na competição do mais famoso rali do mundo.
Tabela dos percursos do Dakar 2021.
Uma prova onde só de
terminar já se pode considerar uma vitória, pois sobreviver às interpéries da
natureza, bem como aos terrenos costumeiros que fazem parte das rotas são uma
caixa de surpresas, onde tanto pilotos novatos como veteranos da competição
estão sujeitos a todo tipo de situação, e mesmo a experiência pode não evitar
de sofrerem percalços e ficarem fora de combate de um momento para o outro. E
não se pode baixar a guarda neste tipo de competição. Tanto na parte humana, e
também na técnica, pois mesmo com a melhor tecnologia de competição disponível,
provas off-roads nunca serão completamente previsíveis, e nem mesmo os
equipamentos conseguem dar conta da situação se surgirem encrencas ao longo do
caminho. Dos 286 veículos que largaram no dia três de janeiro na cidade de Jedá,
apenas 193 deles, ou 67% dos competidores, haviam “sobrevivido” aos 7.646km
percorridos nos doze dias de competição. Dos 61 UTVs e protótipos, por exemplo,
41 deles receberam a bandeirada de chegada na mesma cidade de Jedá, no dia 15
de janeiro. Nos carros, entre os 64 iniciais, 15 deles ficaram pelo meio da
competição, com apenas 49 chegando ao final. Entre as 101 motos participantes,
63 competidores chegaram ao final. Na turma dos pesos pesados, os caminhões, 29
de um total de 44 chegou ao final. Já os quadriciclos, a menor turma de
competidores, com apenas 16 veículos, viu 11 deles receber a bandeirada de
chegada.
E na disputa dos carros, os nomes de sempre deram o ar da graça, e com Stéphane Peterhansel, com um Mini, a fazer história novamente no Dakar, ao vencer a edição deste ano, e somar o seu 14º título na competição, um marco na história do rali. Afinal, neste ano Peterhansel comemorava nada menos do que 30 anos de sua primeira vitória no Dakar: foi em 1991, quando ele competia nas motos, e vencia a competição aos 25 anos, com a Yamaha. E hoje, aos 55 anos, ele ainda está no topo, e mantendo-se entre os melhores da história do rali. Foram nada menos do que 6 triunfos competindo na categoria motos, nas edições de 1991, 1992, 1993, 1995, 1997, e 1998, sempre com a marca dos três diapasões. O piloto depois passou a competir na categoria dos carros, a partir de 1999, e conseguiu ser ainda mais impressionante do que quando competia nas duas rodas. Se o número de títulos nas quatro rodas não é tão maior assim do que quando corria nas duas rodas, a longevidade e competitividade surpreendem. O primeiro título do francês nos carros veio em 2004, com a Mitsubishi, seguidos depois por vitórias nas edições de 2005, 2007 (ambos com Mitsubishi), 2012, 2013 (com Mini), 2016, 2017 (com Peugeot), e agora em 2021 (novamente com Mini). São 32 participações no Dakar, desde a estréia, em 1988, tendo faltado apenas na edição de 1994, quando não participou da competição. O que se pode dizer de seus feitos na história do Dakar? Stéphane ainda foi 2º colocado duas vezes, e 3º outras duas vezes, o que dá uma presença de 17 vezes no pódio da competição off-road. E com o triunfo na edição 2021, Peterhansel também se torna o primeiro piloto da história a vencer provas nos três continentes onde o Dakar já foi realizado: na África, na América do Sul, e na Ásia, onde está o Oriente Médio, palco atual da competição.
O catariano Nasser Al-Attiyah, da Toyota, terminou em 2º lugar a edição 2021 do Dakar. E o espanhol Carlos Sainz, ao volante de outro Mini, que foi vencedor nos carros na edição do ano passado, ficou com o terceiro posto. Ambos são tricampeões do rali Dakar. No cômputo geral, Al-Attiyah terminou o rali 13min51s atrás de Peterhansel, que acumulou uma vantagem de 1hr00min57s para Sainz, seu companheiro de equipe na X-Raid.
Nas motos, a Honda derrotou novamente a KTM, com o argentino Kevin Benavides conquistando a vitória com uma vantagem de 4min56s sobre seu companheiro de equipe, o estadunidense Ricky Brabec. A marca austríaca fechou o pódio com a 3ª posição de Sam Sunderland. Já nos caminhões, a Kamaz praticamente monopolizou o pódio, conquistando as 3 primeiras colocações na prova, com a trinca Dmitry Sotnikov/Ruslan Akhmadeev/Ilgiz Akhmetzianov chegando em primeiro lugar. Nos quadriciclos, a vitória ficou com o argentino Manuel Andujar, seguido pelo chileno Giovanni Enrico, e pelo estadunidense Pablo Copetti. Já nos UTVs, a dupla chilena Francisco Lopez Contardo/Juan Pablo Latrach Vinagre foi a vencedora nesta edição. Na segunda posição, ficou o estadunidense Austin Jones e o brasileiro Gustavo Gugelmin. Os brasileiros Reinaldo Varela e Maykel Justo terminaram a competição em 5º lugar.
Na edição deste ano, aliás, tivemos a participação de sete brasileiros, com nossos compatriotas se destacando na classe dos UTVs. Como mencionado acima, Gustavo Gugelmin ficou em 2º lugar, enquanto Reinaldo Varella e Maykel Justo finalizaram em 5º lugar. Além deles, competiram também Guilherme Spinelli e Youssef Haddad na classe dos carros, terminando a competição em 17º lugar na classificação geral. Já a dupla Marcelo Gastaldi e Lourival Roldan, também disputando na classe dos carros, terminou o rali em 29º. Para Guilherme Spinelli, apesar da 17ª posição final, a sensação foi de vitória, pois há praticamente 10 anos ele não conseguia terminar a prova, sempre ficando pelo meio do caminho, gerando uma grande frustração. Nos UTVs, satisfação para Varella e Justo por vencerem a 12ª e última etapa, depois de baterem na trave várias vezes durante as demais etapas do rali. Eles terminaram a competição com 1h27min05s de atraso em relação aos campeões da categoria. Todos os brasileiros conseguiram chegar ao final da prova este ano, e isso deve ser comemorado pelo fato de terem conseguido sobreviver às agruras do deserto, que costumam ser implacáveis com muita gente. Claro que vencer sempre é melhor, mas há momentos em que é preciso se contentar com o que se alcança, e na competição do Dakar, é preciso reconhecer os limites que a natureza impõe aos pilotos e seus equipamentos.
Guilherme Spinelli e Youssef Haddad (acima) competiram nos carros. Reinaldo Varella e Maykel Justo mais uma vez se destacaram competindo nos UTVs (abaixo).
Infelizmente, o Dakar voltou a apresentar uma nova morte em sua edição 2021. Desta vez a infeliz notícia foi do falecimento do francês Pierre Cherpin, de 52 anos, que competia na categoria motos, no último dia 15. O piloto sofreu um violento acidente na disputa da sétima etapa, no dia 10. Pierre sofreu traumatismo craniano, além de colapso pulmonar e uma fratura de costela, e havia sido levado a um hospital na cidade de Sakaka, onde se encontrava em coma. O piloto, que estava em sua 4ª participação no rali, passou por intervenção cirúrgica por conta dos ferimentos na cabeça, e estava sendo mantido em coma induzido para aliviar sua condição. Ele estava sendo transferido para a França, mas não resistiu aos ferimentos, vindo a falecer durante o transporte. Cherpin torna-se o 31º competidor a falecer no rali, em um total de 75 mortes já registradas nas edições do Dakar, e a 3ª morte registrada nas duas edições da prova disputadas na Arábia Saudita.
Se tivemos essa má notícia, houve ao menos uma mais alentadora: no mesmo dia, o indiano Chunchunguppe Shivashankar Santosh, que também competia na categoria motos, despertou do coma induzido em que se encontrava desde o dia 6 de janeiro, quando também caiu durante a disputa da quarta etapa da competição. Ele havia sofrido um trauma na cabeça, e tido um ombro deslocado, além de ter tido uma parada cardiorrespiratória, que felizmente foi revertida graças à ajuda de outro competidor, que localizou o indiano ferido e acionou o socorro médico da prova. Santosh foi transferido para um hospital na Índia, onde recobrou a consciência, e pelo menos, não sofreu lesões no cérebro.
Apesar das dificuldades impostas pela pandemia, o Dakar 2021 saiu-se satisfatoriamente bem, e seus competidores já começam a traçar planos para a edição do próximo ano, onde esperamos estar com um panorama mais próximo do normal, e com a praga da Covid-19, se não extinta, sob controle. E podem apostar que os pilotos estarão novamente prontos para acelerar nas areias do deserto, mais uma vez desafiando seus limites, e encarando as adversidades da natureza para chegarem à frente dos outros concorrentes.
Durante a realização da edição 2021 do Dakar, tivemos a notícia da perda de um importante participante da história da competição. No 7º dia de disputas, foi divulgado o falecimento do francês Hubert Auriol, aos 68 anos de idade. Uma das maiores lendas da história do rali, Auriol foi o primeiro piloto a vencer a competição tanto nas motos (nas edições de 1981 e 1983) quanto nos carros (em 1992). Ele faleceu vítima de um ataque cardíaco em Paris, onde estava internado há mais de um mês, em decorrência da Covid-19. Conhecido como “O Africano”, Hubert nasceu na Etiópia, apesar de ter vivido na França, e além de piloto, também foi diretor de prova do rali Dakar, entre 1995 e 2004. Auriol participou das edições do Dakar de 1979 a 1994, quando pendurou o capacete. O ex-piloto passou por uma perda trágica no mês de dezembro, quando sua esposa Caroline faleceu de mal súbito enquanto treinava de bicicleta em Paris, na França.
Principal rival de Stéphane Peterhansel na edição deste ano do Dakar, Nasser Al-Attiyah ficou inconformado com a derrota para o “Monsieur Dakar”, e prometeu não voltar a disputar o rali se as regras técnicas da competição não forem modificadas. Na opinião do piloto do Qatar, o fato de Peterhansel competir com um tipo de buggy lhe deu vantagem injusta aos demais competidores da categoria dos carros, uma vez que os veículos “normais” sofrem com detalhes técnicos naturais de seus projetos, como o uso de pneus e suspensões menos largos do que os que podem ser utilizados pelo tipo de veículo utilizado pelo piloto francês. Ele também enfatizou que, enquanto seu modelo de veículo pode ser encontrado para venda, o de Peterhansel é praticamente “exclusivo” de competição, não podendo ser comprado como o seu Toyota, e mencionando que o buggy do adversário nem é produzido por uma montadora de veículos. Peterhansel não deixou barato, e respondeu às críticas de Al-Attiyah afirmando que ele tem “problemas de ego”, e que “quando não ganhamos, não choramos”. O francês ainda declarou que Al-Attiyah foi o próprio culpado de sua derrota, quando fez questão de vencer a etapa prólogo do rali, que lhe dava o direito de largar na frente dos adversários na primeira etapa, estreando o percurso. Só que, saindo na frente, o catariano também foi o primeiro a sofrer percalços no terreno, tendo um pneu furado, e perdendo ali praticamente 12 minutos em relação ao rival francês, que chegou pouco mais de 13 minutos à frente e venceu a competição ao fim do rali. Nos ralis, sair na frente geralmente é desvantajoso, pois é o primeiro a “desbravar” o terreno, e com isso, cair em alguma armadilha no percurso. Quem vem atrás acaba vendo onde o outro piloto teve problemas, e geralmente evita cair no mesmo percalço. Uma pena este tipo de atitude por parte de Al-Attiyah, que já venceu por três vezes a competição, e seria um nome importante a desfalcar a prova em edições futuras por causa deste tipo de picuinha. Seja como for, a ASO, entidade promotora do rali Dakar, e a FIA, devem discutir mudanças nas regras para edições futuras, visando aprimorar as condições de disputa da competição, e talvez estudem essa situação, para evitar novas discussões entre competidores.
O Dakar prepara uma revolução para sua competição em breve: a partir de 2026, o rali terá participantes com máquinas com motorização movida a hidrogênio, a fim de impactar menos o meio ambiente, e assumir uma postura mais ecológica. Todos os principais times deverão competir com o novo combustível já em 2026, e a partir de 2030, todos os competidores terão de utilizar esta motorização. A tecnologia de motores movidos a hidrogênio já existe, mas está em estágios iniciais. Porém, o potencial de desenvolvimento é enorme, e poderia ser uma alternativa à motorização elétrica, que caminha a passos largos para ser expandida em breve, mas que tem seus limites de implantação em diversos lugares, que poderiam adotar o hidrogênio como uma alternativa mais viável. Para isso, contudo, é preciso oferecer às montadoras oportunidades para desenvolver essa tecnologia, e a exemplo do que a Formula-E fez nos últimos anos ao atrair as mais diversas marcas ao redor do mundo com o objetivo de desenvolver a tecnologia de baterias e motores elétricos, a intenção do Dakar é oferecer oportunidade e incentivo semelhantes para as marcas investirem no desenvolvimento deste tipo de motorização. O hidrogênio é um composto extremamente abundante, e seu uso como combustível gera H²O, ou simplesmente água, ao invés do poluidor CO². As fábricas terão quatro anos para desenvolver seus novos veículos com este tipo de motor, até a sua estréia na edição de 2026. Curiosamente, o Dakar compete atualmente na Arábia Saudita, a maior produtora e exportadora de petróleo do mundo...
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