Em recente declaração,
Bernie Ecclestone, ex-todo-poderoso da Fórmula 1, afirmou que teria “acabado”
com a Formula-E, se fosse mais novo, ou se a categoria de carros elétricos
tivesse surgido bem mais antes. A polêmica afirmação de Ecclestone não chega a
ser uma novidade, uma vez que o cartola sempre foi hostil com iniciativas que
ameaçassem a supremacia da F-1 no mundo das competições automobilísticas, e tal
declaração apenas reafirma como ele encarava a manutenção de seus domínios com
a categoria máxima do automobilismo.
Agora, ele afirma que
não dá mais para fazer isso, uma vez que a F-E se consolida cada vez mais, e
que seria preciso ser muito corajoso para ficar contra a categoria, que abraça
o conceito de carros menos poluentes e de melhor performance e custo/benefício,
algo que atrai montadoras do mundo inteiro, que já viram que os atuais carros
movidos a combustíveis líquidos em tempos próximos tenderão a ser coisa de
museus.
Na fala do dirigente,
dá para se notar um forte viés de inveja. E não é para menos. A F-1, com todo o
seu marketing e poderio econômico, não é mais atrativa para as montadoras
mundiais como já foi na década passada. E não foi apenas por causa da nova onda
ecológica dos carros elétricos que eles resolveram mudar de ares. A própria
F-1, no seu modo de operar, tornou-se insustentável para este pessoal, e boa
parte disso é culpa do próprio Ecclestone, que tornou a categoria máxima do
automobilismo um monstrengo devorador de dinheiro, que exigia cada vez mais
recursos, só para se alinhar no grid, e sem a garantia de resultados à altura
dos investimentos realizados. Mas Bernie pouco fez para tornar a F-1 um
ambiente mais agradável, e por assim dizer, menos recheado de politicagens e
frescuras do “politicamente correto”, onde tudo tinha que ser dito dentro do
contexto. E, quando o velho cartola falava que não tinha interesse em jovens,
mas em ricaços velhos, porque estes tinham dinheiro para “consumir” o que a F-1
oferecia; ou falava outras pérolas como quando afirmou que gostaria de fazer
uma corrida sem público, alegando que eles eram um estorvo para os negócios...
Bem, forçando a barra ou não, quem ia achar de boa investir na F-1 desse jeito?
Ainda mais depois da
crise econômica de 2008, que fez várias montadoras se darem conta de que a
brincadeira da F-1 estava cara demais para poucos resultados. BMW, Honda,
Toyota, Ford, todos nomes de peso no mercado mundial, deixaram a competição. Só
a Honda voltou, e hoje, a F-1 amarga ter apenas quatro montadoras envolvidas:
Ferrari, Mercedes, Renault, e a Honda. BMW e Toyota disseram não sentir
saudades da F-1, que nunca conseguiu seduzir outros nomes, como GM e Audi. Mas,
por incrível que pareça, a imensa maioria hoje está mais do que envolvida com o
certame de carros elétricos, em uma quantidade que faz inveja à F-1, de fato.
Os alemães que o
digam: Mercedes, Audi, Porsche e BMW compõe o maior envolvimento de empresas de
um único país na competição. A eles somam-se a Citroen, Nissan, Nio, Penske, e
Mahindra. São 11 equipes no grid, e com a perspectiva de termos mais uma em
breve, totalizando 24 carros. Enquanto isso, a F-1 luta para manter as atuais
10 equipes, e seus 20 carros no grid. Mas comparar um certame com o outro ainda
é totalmente desproposital, uma vez que ambas possuem objetivos diferentes.
Não há como negar que
a F-E nasceu com várias dúvidas entre os fãs do automobilismo. Já havíamos
visto algumas categorias inicialmente promissoras em suas concepções, como a
A1GP, a GP Masters, a F-Superleague, entre outras iniciativas que tiveram vida
curta e não foram adiante. O que dizer então de um certame disputado por carros
totalmente elétricos? Todo mundo tinha suas razões para duvidar. Até o primeiro
campeonato ser disputado, e vermos que sua proposta era de fato atraente. Além
de proporcionar um meio de desenvolvimento para a tecnologia dos motores
elétricos, corridas disputadas, e com vários times lutando por vitórias,
algumas obtidas na raça e no braço, com os competidores mandando ver, fizeram a
F-E ir caindo no gosto do público.
A onda ecológica que
tomou corpo da Europa, com a pressão para se desenvolver a tecnologia dos
carros elétricos também ajudou, e com datas marcadas para o fim da produção dos
carros movidos a combustível tradicional, as gigantes do continente entraram na
disputa para desenvolver seus produtos, e encontraram na F-E o ambiente ideal
para concentrarem seus esforços. Custos reduzidos, corridas com boas disputas,
gerando marketing positivo a respeito, grid com cada vez mais nomes de respeito
e capacidade, além de pouca politicagem. Certo, a categoria ainda tem seus
problemas e defeitos, mas o que temos hoje, diante do que vimos em 2014, quando
se iniciou a disputa, é amplamente recompensador.
No momento, a F-E também
é um dos campeonatos afetados pela pandemia do coronavírus, que inclusive fez
com que a direção da categoria cancelasse as provas de Nova Iorque e de
Londres, sendo que o local escolhido para sediar a prova na capital britânica
está sendo usado no presente momento como área hospitalar emergencial para
tratar dos doentes. A categoria conseguiu realizar 5 provas do atual
campeonato, desde a Arábia Saudita, até a etapa do Marrocos, antes que o mundo
se desse conta de que a Covid-19 era um problema mais sério do que se esperava
inicialmente. Começou-se a adiar as corridas, que foram sendo canceladas. Neste
presente momento, discute-se como fechar o campeonato, uma vez que o
regulamento exige que pelo menos 6 provas tenham sido disputadas. Faltaria
apenas uma para satisfazer essa exigência. Alejandro Agag, idealizador da
competição, estabeleceu o limite do mês de setembro para que a F-E possa fazer
mais algumas corridas, e tentar fechar a temporada em curso.
Isso porque para o fim
do ano deve ser iniciado uma nova temporada, e estender a atual além do mês de
setembro poderia comprometer o desenvolvimento e preparação dos times para a
nova temporada. Teoricamente, isso não deve ser tão complicado assim, visto que
a F-1 já se vê realizando corridas em julho, e com sorte, o panorama na Europa,
que em alguns lugares parece já ter passado do pico de infecções da doença, já
se programa para voltar à suas rotinas, ainda que com restrições e regras de
segurança.
Pista de Donington Park (acima) poderia sediar corrida da F-E. Barcelona (abaixo) possui um traçado menor opcional que também poderia ser utilizado para essa finalidade. |
O problema é que a
F-E, ao contrário da F-1, sempre teve o objetivo de ficar mais “perto” do
público amante da velocidade, e por isso, tem sua opção por correr em pistas de
rua, onde os torcedores podem ver os carros de mais perto, além de facilidades
de acesso a times e pilotos que na F-1 só são possíveis aos mais endinheirados,
e por vezes, nem mesmo a eles. Enquanto a categoria máxima do automobilismo
fala em correr as primeiras corridas sem público nas arquibancadas, a F-E tem
neste quesito um problema para resolver, uma vez que circuitos de rua
normalmente causam transtornos dentro das cidades, e se o público não tiver
como aproveitar o evento adequadamente, isso se torna um ponto negativo para se
poder realizar a prova nestes lugares. Talvez se as corridas forem realizadas a
partir de agosto, já se possa ter uma idéia melhor das condições de segurança
para se liberar o público, mas ainda é totalmente incerto apostar neste
aspecto, e a presença dos torcedores possa ser liberada.
Mesmo assim, vai ser
complicado. Países como Holanda e Hungria estabeleceram proibições para eventos
com muitas pessoas até meados de agosto, para evitar aglomerações que possam
ampliar o número de infecções do coronavírus. É verdade que tudo pode até se
normalizar até lá, mas como já afirmei em colunas anteriores, não basta simplesmente
marcar uma corrida e ir disputá-la, é preciso acertar uma série de detalhes, e
isso é algo que tem de ser feito com antecedência, para que todos possam se
programar, imprensa, times, pilotos, locais da competição, e claro, o público
torcedor. E por enquanto, nem todos estes requisitos podem ser cumpridos
adequadamente, e ainda não sabemos quando se poderá fazê-lo, ao menos como
seria ideal.
Alejandro Agag está
perfeitamente ciente, e no caso de não ser possível realizar novamente, durante
algum tempo, pistas de rua, defende que a F-E vá para os autódromos, sendo que
algumas pistas, como Donington Park e Valência, onde a categoria já fez testes
em suas pré-temporadas, poderiam ser boas opções, além de outras pistas que
tivessem interesse e condições para se realizar corridas. Um dos motivos para a
categoria correr em pistas de rua, além da maior proximidade do público, é a
sensação maior de velocidade, que daria a impressão dos carros serem mais
lentos se corressem em um autódromo mais “convencional” como faz a F-1. De
fato, os monopostos da categoria não atingem a mesma velocidade final de um
F-1, mas isso não quer dizer que não possam fazê-lo, com as devidas adaptações.
Um dos motivos é a
capacidade da bateria, que antigamente, não durava toda a corrida, obrigando os
pilotos a terem de trocar de carro em algum momento. Isso durou até a entrada
do modelo Gen2, com nova aerodinâmica, e claro, um novo conjunto de baterias,
de maior capacidade, que enfim permitiu aos pilotos correr toda a prova sem
trocar de monoposto. Claro, as provas passaram a ser feitas com duração de
tempo, e não de voltas, como antes, mas mesmo assim, foi uma grande evolução na
capacidade de autonomia das baterias utilizadas nestes carros. E como a
potência a ser utilizada é controlada, isso também influi no desempenho total
do carro, a fim de que ele possa cumprir a corrida inteira, mas também limita a
performance de velocidade de ponta dos carros. Como eles correm em pistas de
rua, a sensação de velocidade, além das pistas curtas e por vezes, um pouco
estreitas, dão a sensação de que os carros são mais rápidos do que parecem. Mas
correr em autódromos teria um efeito diferente. As únicas exceções são a pista
do circuito Hermanos Rodrigues, na Cidade do México, que possui um traçado mais
curto que é utilizado pela categoria, ao invés do traçado integral, utilizado
pela F-1; e a de Marrakesh, no Marrocos. E também a pista de Berlim, montada
dentro do aeroporto desativado de Tempelhof, mas que mesmo assim é curta para
os padrões de um circuito de verdade. Mas em teoria, poderia se resolver isso
com poucas mudanças.
A Audi é um dos principais nomes da F-E: companhia alemã nunca caiu no conto do cisne da F-1, apesar de largamente cortejada por ela, e claro, por Bernie Ecclestone. |
Uma delas seria
liberar mais potência, de modo a conferir aos carros mais velocidade.
Obviamente, isso gastaria mais energia, mas que tal então voltar a fazer a
troca de carros durante a prova? Isso permitiria a realização de corridas em
traçados integrais dos circuitos, para não mencionar que a troca dos monopostos
sempre foi um fator que ajudava a criar mais emoção nas corridas, recurso que
se perdeu quando os carros não precisaram mais ser trocados. Por isso, a
categoria criou o “modo ataque”, como forma de compensar isso. Lucas Di Grassi
afirmou que os carros da F-E têm potencial para serem tão potentes e rápidos
como os da F-1, mas que não fazem isso justamente pela sua proposta de correr
em pistas de rua. Mas, claro, os carros precisariam passar por modificações, de
modo a poderem liberar muito mais potência, que poderia ser viável em uma pista
de autódromo, mas não em um circuito de rua.
Na verdade, os F-E
estão paulatinamente ficando mais velozes, tanto que a direção da categoria já
começou a estudar a eliminação de algumas curvas e/ou chicanes das pistas onde
correm, para melhorar as possibilidades de ultrapassagens, uma vez que, com o
aumento da velocidade, os trechos de reta estão começando a ficar curtos, pela
diminuição do tempo que se vence estes trechos. Outro motivo foi a segurança,
uma vez que estas curvas e/ou chicanes estrangulavam a largura da pista, de
modo que as possibilidades de acidentes entre os pilotos começava a ficar bem
mais alta. Mas trata-se de uma evolução de performance que é justamente
controlada com o objetivo de manter os custos de competição mais acessíveis
para todos os participantes, de modo a não inflacionar a disputa na F-E.
Naturalmente, seria
preciso considerar a viabilidade das competições em autódromos, para que as
mudanças necessárias não gerem custos que sejam elevados demais para o patamar
em que a categoria está acostumada a trabalhar. Mas há opções de circuitos que
possuem traçados menores, ou algumas opções de traçados, que poderiam ser
utilizados também. Donington Park, na Inglaterra, por exemplo, tem o traçado
“GP” (Grand Prix), com cerca de 4,02 Km de extensão, e o traçado “nacional”,
com cerca de 3,15 Km, que poderia ser utilizado pela F-E. Da mesma forma, o
circuito de Valência, na Espanha, possui também o seu traçado “GP”, com 4,0 Km,
e o traçado “nacional”, com 3,1 Km, que também poderia ser utilizado pela F-1.
Por outro lado, a pista de Jerez de La Fronteira, também na Espanha, só possui
um tipo de traçado, com uma chicane podendo ser usada ou não, dependendo da
categoria, mas que mantém basicamente um traçado com mais de 4,0 Km. E, quem
sabe, Barcelona poderia ser uma opção? O traçado GP, utilizado pela F-1 e
MotoGP, possui os conhecidos 4,65 Km, mas o circuito também tem um traçado
“nacional”, com apenas 2,98 Km. A pista de Aragón, também na Espanha, possui o
traçado “GP”, de 5,34 Km, e também o traçado “nacional”, com 2,65 Km. Estes são
apenas alguns exemplos de pistas com mais de uma opção de traçados que poderiam
ser utilizados.
Usar as opções dos
traçados “menores” destas pistas eliminaria a necessidade das mudanças e
adaptações nos carros, mantendo os custos de competição dentro dos parâmetros
estabelecidos inicialmente, além de oferecerem oportunidades de novas corridas
para todos. Seria uma opção interessante para a categoria, que poderia realizar
as provas que deseja, e continuaria oferecendo ao seu público, mesmo que seja
apenas através da TV, as emoções de disputas que suas corridas oferecem.
Muitos ainda torcem o
nariz para a F-E, por considerarem que aquilo não é uma corrida de verdade,
para não mencionar que os motores elétricos não fazem o barulho característico
das unidades movidas a combustão. Isso pode não ser mais cativante para muitos,
e como Bernie Ecclestone também reclamou, os carros elétricos não possuem a
capacidade de gerar afeição e idolatria que marcas como Ferrari podem produzir.
Bernie afirmou que uma Ferrari sempre vai ser uma Ferrari, indiferente onde
esteja, mas um carro Tesla nunca terá a mesma empatia. Ele pode estar certo,
mas a sociedade está mudando, e o culto aos automóveis também. De certa forma,
para muitos torcedores, que aprenderam a torcer por gostar de uma marca, o
campeonato e as marcas participantes da F-E poderão nunca oferecer o mesmo
fascínio e atração, mas nem por isso estas marcas podem ignorar o futuro que se
aproxima. Do contrário, nomes consagrados também nos meios esportivos, como
Porsche ou BMW, nunca estariam por lá. É um novo tempo que se avizinha, e as
marcas tentam se adaptar a ele, e manterem seus nomes e suas tradições tanto
quanto possíveis neste novo horizonte, impensável até anos atrás.
Se vai ser melhor ou
não, depende de cada um. E, por enquanto, F-E e F-1 seguem seus caminhos. Se
Bernie está incomodado com a F-E, o problema é dele, porque até o presente
momento, a categoria elétrica vem sendo um bom sucesso, à sua maneira.
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