Estamos fechando o ano de 2022, e como que emulando as palhaçadas feitas pela classe política brasileira, eis que a FIA, no “apagar das luzes” do ano, resolveu tacar uma nova regra em seu regulamento, que na prática, significa um verdadeiro “cala-boca” nos pilotos. A partir de 2023, os competidores estão proibidos de fazer manifestações, especialmente de caráter político, sem autorização prévia da entidade que comanda o automobilismo mundial. Basicamente, a nova redação do artigo 12.2.1 do Código Esportivo Internacional da entidade diz que “a realização e exibição geral de declarações ou comentários políticos, religiosos e pessoais que estejam claramente violando o princípio geral de neutralidade promovido pela FIA em seus estatutos, a menos que previamente aprovados por escrito pela FIA para competições internacionais ou pela ASN (sigla em inglês para Autoridade Esportiva Nacional), para competições internacionais dentro da sua jurisdição”, constitui violação das regras.
A regra vale para todas as competições homologadas pela FIA no mundo inteiro, e na prática, institui uma censura em todo mundo que compete nestes lugares de falar algo, a menos que consulte antecipadamente a FIA, e receba autorização para tanto. Claro que a entidade desmente categoricamente que isso será censura, mas quem vai acreditar nisso. Vale lembrar que o atual presidente da entidade, Mohammed Ben Sulayem, é do Oriente Médio, onde muitos países não são democráticos, e cerceiam a liberdade de seus cidadãos, alguns mais, outros menos. E o próprio dirigente já se manifestou estar incomodado com opiniões divergentes, ao criticar pilotos que atualmente fazem mais do que pilotar, recado claro a Lewis Hamilton e Sebastian Vettel, que nos últimos tempos, andaram usando sua posição de ídolos do esporte para defenderem causas das mais diversas, que nem sempre agradam a todo mundo.
E este ano, em sua estréia na gestão como presidente da entidade, a FIA esteve enrolada em questões espinhosas, como a polêmica decisão da temporada de 2021. Na tentativa também de melhorar as regras, tudo o que a FIA conseguiu foi se enrolar ainda mais, ao invés de propor soluções mais claras e lógicas. E claro, ele não gostou nem um pouco das críticas do público à atuação da entidade. A FIA, aliás, não é a única que está se envolvendo em um assunto delicado. Vimos na recente Copa do Mundo como a FIFA tentou “calar” as seleções e jogadores, a respeito das controvérsias do país-sede do mundial deste ano, o Qatar, que tem um histórico de desrespeito aos direitos humanos que ficou ainda mais conhecido devido às péssimas condições impostas aos trabalhadores que ajudaram a erigir os estádios para a Copa do Mundo, para não falar, claro, das negociações obscuras que resultaram na escolha do país do Oriente Médio como sede do mundial deste ano.
Nos últimos anos, tentando responder ao apelo dos torcedores, e se mostrar engajada com algumas causas mundiais, a F-1 criou o lema “Corremos como um”. Mas foram manifestações iniciadas mais por Lewis Hamilton e por Sebastian Vettel que começaram a se fazer mais presentes. Agora, qualquer manifestação que não for previamente acordada com a FIA será, nos dizeres da entidade, uma violação das regras, e passível de punição. Mas, eis aí um detalhe sutil, e obscuro: qual punição? A entidade não foi clara neste sentido, e isso pode dar muitos problemas. A questão é se eles agirão com coerência e lógica, mas pelo que vemos das atitudes da FIA em tempos recentes, devemos esperar é mesmo pelo pior, e não por atitudes sábias e corretas. E a entidade quase não deixa transparecer sua marcação com quem anda lhe criticando, como ocorreu com Pierre Gasly, que após tecer críticas a respeito da condução da FIA no GP do Japão, passou a ter marcação cerrada dos comissários de pista, recebendo advertências e punições na carteira de pontos que o colocam quase na posição de tomar uma suspensão de um GP, e olhe que o piloto francês não é nenhum barbeiro na pista.
Não nego que para certas manifestações, uma tomada de posição em conjunto da FIA com os pilotos poderia surtir melhores efeitos, mostrando a categoria automobilística engajada em uma causa nobre, e que precisa ser transmitida aos fãs, a fim de informar, chamar a atenção, ou mesmo conscientizar a respeito de terminados assuntos. Isso poderia potencializar as mensagens, e coordenar melhor as idéias, e de como usar a força do esporte a motor para difundir idéias importantes de vários acontecimentos do mundo atual. Seria positivo, para mostrar que campeonatos como a F-1, estão sintonizados com o dia-a-dia, reconhecendo a importância de certos assuntos, e evitando ficar em uma “bolha à parte da sociedade”, indiferente e insensível a certos problemas que dizem respeito a todos. O problema é que isso não está sendo feito, na prática, com essa intenção, muito pelo contrário.
Com a F-1 literalmente “se vendendo” aos árabes recentemente, e devido ao fato de muitos países daquela região terem um histórico de amplo desrespeito aos direitos humanos, mesmo os mais básicos, por mais que sejam nações independentes, isso não quer dizer que alguns hábitos devam ser tolerados pelo resto do mundo. Não falo de reclamar de assuntos triviais, cada cultura tem suas diferenças, e muitas delas devem ser respeitadas, mas como respeitar a lei de um país que trata os homossexuais como criminosos, e com punição passível de morte, só por serem homossexuais? Ou o tratamento discriminatório, baseado em leis religiosas arcaicas, que fazem com que as mulheres sejam tratadas como “propriedades” de seus maridos, e lhes neguem vários direitos comuns a todos, só pelo fato de serem mulheres? Algumas atitudes devem ser sim questionadas, e denunciadas, mas não é todo assunto que vai parecer tão óbvio ser discutido.
Também temos o problema de evitar transformar o evento esportivo em uma panfletagem política, pura e simples. Transmitir as mensagens é importante, mostrando engajamento com causas válidas, mas tomando o cuidado disso não virar uma pregação sumária, roubando do evento o seu protagonismo. Não é algo simples, e muitas vezes, isso pode descambar para a baixaria. Mas se omitir é algo moralmente ainda pior. Mas, mais importante que isso, é preciso ter coerência com certas atitudes, e não usarmos dois pesos e duas medidas para situações similares.
E o público? Bem, o público fã de corridas é variado, e pode tanto gostar do engajamento da categoria, como repudiá-lo, dependendo do assunto, ou da forma como ele é tratado. Tenho visto muitas opiniões de “fãs” que acabam concordando com a atitude do presidente da FIA, e que para eles, pilotos só deveriam se preocupar em pilotar, e nada mais. E que ao se engajarem nestas causas, estariam esquecendo seu papel, e seu trabalho. Vi várias críticas neste estilo dirigidas a Hamilton, alegando que ele deveria deixar de apregoar idéias e voltasse a pilotar, o que não estaria fazendo mais na pista, acusando-o até de “fazer mero marketing” destas causas sem saber do que fala, e como se isso estivesse tirando o seu foco de guiar um carro de corrida. Para alguns, Vettel fez o certo de se aposentar, pois agora vai poder bancar o ativista, e não mais fingir que era um piloto de corridas, e que deixaria de “encher o saco” com suas posições a respeito de um monte de assuntos “inúteis” para muitos. Como se pode ver, tem muita gente contrária a que astros do esporte dêem opiniões sobre certos assuntos.
De certa forma, eu concordo quando estas opiniões não passam sim, de mero “marketing”, quando determinado astro esportivo quer tentar fazer média a respeito de determinado assunto, e assim, defende algo que nem sabe do que se trata, na maioria das vezes. Tal atitude, que se aproveita de um assunto sério, deve de fato ser criticada, mas tem muitos artistas e astros do esporte, que não falam apenas da boca para fora sobre os assuntos que defendem, mas falam com conhecimento de causa. Hamilton se posiciona contra o racismo por termos tido vários casos de negros que foram mortos por pura discriminação? Ora, se esquecem que ele, sendo negro, por mais que tenha obtido sucesso na vida, também sofreu discriminação em sua vida, logo, não está falando apenas pelas pessoas que sofreram e/ou sofrem discriminação pela cor da pela, mas também pelo que ele próprio sentiu em sua vida. E ele não é o único que sabe falar das causas pelas quais anda divulgando nos últimos tempos.
Curiosamente, hoje em dia temos uma multidão que quer dar palpite em tudo, mas ao mesmo tempo, parece odiar quando outras pessoas dão suas opiniões, especialmente se tais opiniões lhe são contrárias, ou discordantes. E isso é preocupante. Muitos fãs que acham que pilotos deveriam apenas pilotar provavelmente tem receio de que as corridas virem um painel político, e se esqueçam que estão ali para disputarem uma corrida. É uma preocupação válida, sob este argumento. Mas o caso principal, aqui, é a FIA determinar o que pode e o que não pode ser manifestado, impondo sim, uma censura prévia, ou de acordo unicamente com seus interesses. E a postura da entidade, e da própria F-1, já se mostrou duvidosa em muitos momentos, e não é de hoje. A justificativa de que “esporte e política não se misturam” é uma mentira completa, porque a própria indiferença do esporte já é uma posição política em relação a algum assunto.
Não vamos nos esquecer de que a F-1 só deixou de correr na África do Sul, quando o país impunha o vergonhoso regime de discriminação do apartheid, quando essa situação ficou insustentável, perigando comprometer o campeonato perante patrocinadores que se colocavam contra essa situação. E atualmente, críticas aos regimes dos países do Oriente Médio podem ser malvistas devido ao apoio que estes países estão oferecendo à competição. A Aramco, empresa da Arábia Saudita, virou patrocinadora de várias provas, e até mesmo de parte do campeonato da F-1, que se mostrou vital para manter as contas em dia da categoria, nas temporadas de 2020 e 2021, afetadas pela pandemia da Covid-19. Ao oferecer estes apoios de empresas de seu país, a Arábia Saudita espera “comprar” a opinião internacional, para que se faça vista grossa das atrocidades que são cometidas em seu país, entre elas, a execução de homossexuais, só por serem isso, para exemplificar. Por este tipo de atitude, não se pode usar a desculpa da “cultura local”, e sim cobrar e pressionar para que tais discriminações não mais ocorram.
Curiosamente, a FIA agiu rápido quando a Rússia invadiu a Ucrânia, e por causa disso, não apenas cancelaram a prova russa de F-1 do calendário, como até baniram os pilotos e equipes do país no mundo do automobilismo. Uma atitude talvez até exagerada, por atingir pilotos que nada tinham a ver com o status quo político do país, como Danill Kvyat, enquanto alguns outros, como Nikita Mazepin, cujo pai tem ligações com o quadro político do Kremlim, poderia até ser justificável a situação. Mas aí, também, a Rússia ultrapassou os limites, com uma invasão militar que até hoje causa transtornos à Ucrânia, e indiretamente a vários outros países, enquanto em outros lugares, os afrontes são mais velados, e por isso mesmo, tolerados, mesmo que não devessem sê-lo.
Mas, mais do que tudo, o que a cartolagem quer é silenciar as críticas, pois muitos negócios são feitos com países cujos modos de governar e estilos de vida incluem gestos intoleráveis para com as pessoas. A FIFA tentou calar seleções e jogadores que tentaram questionar pontos e acontecimentos do Oriente Médio, e agora, a FIA parece jogar na mesma direção, a fim de impedir que pilotos possam se manifestar sobre assuntos “sensíveis”.
Para alguns, quem se manifesta é um hipócrita, pois critica por vezes um esporte, ou uma situação da qual tem sua vida, e mesmo assim, participa. Seleções e jogadores receberam essa crítica por tentarem se manifestar no Qatar, quando todos concordam em participar da Copa do Mundo, justificando que, se quisessem mesmo se manifestar, o correto era boicotar o evento, e nem ir para lá se apresentar. Não deixa de ser uma opinião com certa validade. Mas será que isso seria mais efetivo? Em 1980, os Estados Unidos e vários outros países boicotaram os Jogos Olímpicos de Moscou, devido às atrocidades da ditadura comunista soviética. Daí que, em retaliação, pura e simples, os países sob o jogo da ditadura soviética simplesmente boicotaram as Olimpíadas de Los Angeles, em 1984.
Lamentavelmente, é uma situação complicada mesmo. Não dá para ser conivente, mas por outro lado, certos compromissos exigem responsabilidades que nos levam a ter de aturar situações com as quais não concordamos, mas precisamos cumprir. Cumprir com certas obrigações, e ao mesmo tempo, ser crítico com assuntos que possam se colocar contra assumir tais responsabilidades profissionais não é algo impossível, bastando deixar claro tal divisão de opinião e trabalho.
E outra coisa: é importante levantar certas bandeiras, a fim de tentar conscientizar o público. Mas este, por sua vez, pode prestar atenção, ou simplesmente ignorar. Hamilton abraçou a casa vegana, certo? Bem, isso não me atrai, e portanto, deixo de lado. É a opção dele, respeito isso, mas não tem que ser a minha, mas de outra pessoa acha isso válido e interessante, é o direito dela. Não se trata de enfiar uma idéia goela abaixo, como se fosse uma pregação religiosa. O que está em discussão é o direito de poder defender aquilo em que acredita, dentro de limites aceitáveis, na esperança de um mundo melhor, ou menos desigual. Ao estabelecer necessidade de autorização prévia, é esse o problema: e se a FIA não autorizar? Qual a justificativa? E se for uma explicação plausível, ou não? Nada disso foi explicado ainda. E periga também proibir que os competidores manifestem suas opiniões fora dos fins de semana de competição. Quando se abre um precedente desses, as chances da coisa extrapolar, e assumir proporções maiores, pode fugir ao controle, na ânsia de tentar controlar as opiniões.
Claro, é fácil ser contra que os pilotos possam defender seus pontos de vista, já que serão eles que serão afetados pela medida, mas e se isso se aplicasse a você? O que faria? Estamos vendo várias democracias começarem a “suprimir” de forma paulatina certas liberdades, em nome justamente da mesma liberdade. E daí para isso descambar para tirania e ditadura, pode ser menos que um breve passo. Vejamos como isso vai se desenrolar, ou se a FIA terá dado um passo perigoso na direção do autoritarismo. O ano de 2023 já parece menos esperançoso do que antes...
Hora de encerrar o ano. 2022 certamente termina melhor do que começou, mais ainda com muita coisa precisando melhorar, e não apenas no aspecto da pandemia da Covid-19, que ainda não foi totalmente debelada. Foi um ano onde o mundo também piorou em certos aspectos, e onde o Brasil, na ânsia de tentar voltar a andar para a frente, escolheu andar para trás, ignorando as possibilidades de mudar um roteiro viciado, e que no presente momento, só me faz ter maus presságios para o próximo ano. Não sei o que nos espera em 2023, mas em alguns assuntos, não tenho esperança de dias melhores. Gostaria de passar uma mensagem de fim de ano mais positiva, mas tenho de ser franco e honesto, e por isso mesmo, não vejo como o mundo estará melhor no próximo ano. Espero estar errado, mas fico muito preocupado se estiver certo...
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