Lewis Hamilton fez história ao vencer o Grande Prêmio da Rússia: foi sua 100ª vitória na F-1, uma marca excepcional conquistada pelo piloto inglês.
O Grande Prêmio da Rússia estava fadado a ser uma corrida sem grandes atrativos, talvez com o destaque de ter uma segunda vitória consecutiva da McLaren, o que seria um feito notável, depois do triunfo obtido na Itália. Mas a chuva que chegou no finalzinho da prova embaralhou tudo, e enquanto alguns tiveram azar na forma como lidaram com a intervenção de São Pedro, outros tiveram sorte. Um deles foi Max Verstappen, que tendo saído do fim do grid por ter trocado seu motor, estava empacado na 7ª posição, e graças à chuva, e ter parado no momento certo, saiu mais do que no lucro terminando a corrida em 2º lugar. E Lewis Hamilton, por sua vez, teve facilitada sua luta pela vitória, que não estava sendo fácil na disputa com Lando Norris, que conseguia resistir com sua McLaren às investidas do piloto da Mercedes. O time germânico foi incisivo na chamada de seu piloto ao box, e com isso, Hamilton trocou seus pneus de seco para os intermediários, que lhe possibilitaram navegar na pista quando o aguaceiro chegou de vez em Sochi e quem insistiu em ficar na pista rodava a torto e a direito, mesmo em baixa velocidade. E o triunfo do heptacampeão se tornou épico pela marca alcançada: Hamilton faturava ali a sua 100ª vitória em um Grande Prêmio de Fórmula 1.
Cem vitórias. Uma marca redonda de triunfos. Quem imaginava que, algum dia, um piloto teria tal recorde de conquistas na categoria máxima do automobilismo? De fato, seria uma marca incomensurável, se levarmos em conta as condições da F-1 nas suas primeiras décadas de existência. Até meados dos anos 1980, por exemplo, o recorde de triunfos em GPs era de Jackie Stewart, que havia vencido “apenas” 27 corridas em toda a sua carreira, que poderia ter sido mais gloriosa, se ele não tivesse encerrado sua participação na F-1 ao fim de 1973, com 99 GPs disputados. Em fins dos anos 1980, Alain Prost havia se tornado o novo recordista de vitórias na F-1, ultrapassando Stewart, e chegando ao incrível número de 51 triunfos ao fim da temporada de 1993, quando deixou as pistas. Ayrton Senna, então com 41 vitórias, outro número pra lá de expressivo na época, poderia ter alcançado e até deixado Prost para trás nas estatísticas, mas o destino o impediu de conseguir tais feitos, com sua morte prematura em Ímola, em 1994.
E então veio Michael Schumacher, que tal como um rolo compressor, deitou e rolou de forma nunca antes vista, chegando a obter incríveis sete títulos, e nada menos do que 91 vitórias na categoria, números considerados inalcançáveis para muitos. Na primeira metade da década passada, Sebastian Vettel surgiu como possível herdeiro de Schumacher, conquistando 4 títulos consecutivos, e habilitando-se a bater os recordes de seu compatriota. Mas uma mudança de ares para a Ferrari o fez deixar de vencer tanto quanto poderia. E então tivemos Lewis Hamilton...
O piloto inglês chegou à F-1 em 2007, e de cara já se mostrava diferenciado. Não apenas era uma aposta da McLaren, que colocava um completo novato logo de cara em seu time de F-1, como era também o primeiro piloto negro a competir na categoria, uma conquista, se levarmos em conta que, apesar de seu talento, ele também sofreu as consequências do racismo inerente em muitos lugares. Mas o piloto inglês mostrou que chegava chegando, e conseguiu bater de frente logo de cara com seu próprio companheiro de equipe, Fernando Alonso, então recém-coroado bicampeão, e considerado o melhor piloto de toda a categoria. Hamilton não se intimidou, e deixou o asturiano desorientado com sua performance, desencadeando uma verdadeira guerra dentro do time inglês que resultou no fim da parceria de Alonso com a escuderia.
A primeira vitória (acima) veio no Grande Prêmio do Canadá em 2007. E em 2008, o primeiro título, com a McLaren (abaixo), onde ficou até 2012, sempre vencendo corridas em todos os campeonatos.
Alonso, que havia “aposentado” Michael Schumacher, agora era posto de lado por um novato atrevido e arrojado, que declarava com orgulho que sua grande inspiração era Ayrton Senna, e que sonhava em repetir as façanhas do piloto brasileiro na pista. De cara, ele já conseguiu uma: entrar na McLaren e sacudir a hierarquia de forças que todos imaginavam que haveria no time, com Alonso comandando a escuderia, e Lewis ficando em segundo plano. De maneira similar quando Senna chegou no time inglês em 1988, e todos se perguntavam se Alain Prost, que “aposentara” Niki Lauda e Keke Rosrberg, faria o mesmo com Ayrton. E todos sabem o que aconteceu então... E seria Hamilton tão vitorioso como esperava? Sem Alonso na McLaren, o inglês foi o primeiro piloto de fato em 2008, e numa disputa renhida com Felipe Massa e a Ferrari, Hamilton conquistou seu primeiro título, aqui mesmo em Interlagos, numa decisão anticlimática para os torcedores brasileiros, que vibraram com o triunfo de Massa no circuito paulistano, mas se frustraram com a perda do título para o atrevido inglesinho que disputava apenas sua segunda temporada na F-1. Quão longe Lewis ainda poderia ir na competição? Ninguém sabia responder, mas já se sabia que Hamilton poderia mesmo ir longe.
E realmente foi. E pouco mais de uma década depois de conquistar seu primeiro título, Hamilton é hoje um dos gigantes do esporte mundial, e recordista de praticamente todas as grandes marcas da F-1, começando pelas pole-positions, 101, e atingindo agora na Rússia sua 100ª vitória na competição. Com 281 GPs disputados desde sua estréia na categoria máxima do automobilismo em 2007, ele acumula também 176 pódios e 57 voltas mais rápidas, sendo este um quesito onde ele não é o recordista absoluto, uma vez que Michael Schumacher tem 77 voltas mais rápidas anotadas em sua carreira na F-1. Mas, mais do que um grande campeão, Hamilton tem usado de sua posição de destaque para apoiar várias causas, tendo inclusive se posicionado contra o racismo no ano passado, algo mais do que natural, por ter sentido isso na própria pele, e ver que hoje em dia a cor das pessoas ainda inflige discriminação injustificável em muitos lugares.
Lewis procura dar voz a pessoas que lutam por causas justas, e se encontram em posição de desvantagem para difundir ideais que promovam um mundo menos desigual e mais justo. É bem verdade que esse ativismo incomoda muita gente, e talvez por isso mesmo, o piloto seja tão contestado por muita gente quanto a ele ser um dos gênios do mundo do esporte a motor. Mas um piloto comum alcançaria números tão grandiosos em sua carreira, se não fosse de fato um piloto fora de série, diferente da maioria? Não há sorte ou coincidências que poderiam permitir que um piloto de capacidade limitada fosse assim tão bem sucedido, e por tanto tempo, praticamente uma década e meia competindo em alto nível, na categoria máxima do automobilismo mundial, a Fórmula 1.
Mas muitos se recusam a aceitar a grandiosidade de Hamilton como piloto. A justificativa é o fato de que, desde sua estréia na F-1, Lewis sempre pilotou carros vencedores, e especialmente, a partir de 2014, defendendo a Mercedes, raramente teve rivais à altura na F-1, iniciando uma hegemonia que só na atual temporada está sendo realmente desafiada, com a Red Bull assumindo novamente ares de favorita, e com Lewis a mostrar, para seus detratores, “ser um piloto normal” sem o carro de “outro planeta” que tinha nas mãos entre 2014 e 2020. De certa forma, não estão totalmente errados. Dificilmente Lewis alcançaria números tão astronômicos em sua carreira, se não dispusesse de um carro competitivo, e no caso da Mercedes, superior aos demais na pista. Mas, também não estão exatamente certos. Aliás, se formos colocar que Lewis só ganhou seu enorme status atual de mito da velocidade por ter carros dominantes, se aplicarmos o mesmo raciocínio a outros pilotos, vários nomes de peso da história da F-1 também deveriam ser “considerados” pilotos normais devido aos carros superiores que eles tiveram nas mãos.
Começando por Michael Schumacher, que teve a seu favor o maior período de hegemonia da Ferrari, entre 2000 e 2004, que ajudou também a “turbinar” os números da carreira do alemão, com cinco títulos consecutivos neste período, e uma enxurrada de vitórias que em nada deixa a desejar na comparação com o período recente da Mercedes e Lewis Hamilton. Só para exemplificar, em 2004, o piloto alemão venceu nada menos do que 13 corridas, um número de vitórias em uma mesma temporada não alcançado por Hamilton até hoje, mas com o piloto alemão tendo à sua disposição um carro muito superior à concorrência. Descreditar o mérito de Lewis Hamilton por ter competido nos últimos anos com um carro superior seria desmerecer também Schumacher por seus anos de domínio na F-1, uma vez que o alemão também contou com tal primazia de equipamento. E Alain Prost, um dos maiores vencedores da história, que sempre pilotou carros competitivos durante a maior parte de sua participação na F-1, e em pelo menos 3 das temporadas em que foi campeão, estava a bordo do melhor carro da competição? Jim Clark, que teve seus feitos a bordo de uma Lotus reinante, ou Jackie Stewart, com a Matra e Tyrrel em seus auges? Ou até mesmo Juan Manuel Fangio, que guiou para os times dominantes da F-1 nos primórdios da categoria, nos anos 1950?
E, aqui podemos também ter o mesmo critério a respeito de Ayrton Senna, que também só conquistou seus títulos na F-1 tendo nas mãos o melhor carro da competição, com especial destaque para a temporada de 1988, onde praticamente só a McLaren vencia. Uma supremacia que diminuiu um pouco nos anos seguintes, mas que ainda assim deu ao piloto brasileiro, considerado uma lenda na história do automobilismo mundial, o privilégio de correr com o melhor carro do grid. Por quê aplicar a Hamilton tamanhas críticas, e não aplicá-las a outros competidores que alcançaram muitos méritos dispondo dos mesmos privilégios?
Não se trata de afirmar que Lewis Hamilton é o maior piloto da história da F-1. Essa é uma posição que nunca terá um consenso, diante das diferenças entre as épocas da competição, mas é notório afirmar que o inglês é de fato um dos gigantes do esporte a motor mundial, pelo que já realizou até aqui em sua carreira, que ainda não acabou, e que não está, como seus críticos apregoam a torto e a direito, em decadência, e mostrando ser um piloto “derrotado” por estar, nas palavras desses mesmos críticos, “não” aguentando competir com um piloto de verdade como Max Verstappen, dando a entender que Lewis seria uma farsa como piloto, e estaria levando uma surra do holandês, a ponto de “apelar” para golpes antidesportivos na pista, como foi visto em Silverstone, e até mesmo em Monza. Menos, pessoal, menos...
Difícil engolir tanto rancor e ódio que se pode ver nos comentários a respeito do piloto inglês. Já chegaram a acusa-lo de sujo e desonesto, enquanto Verstappen, que também não é nenhum santo, como grande ás “verdadeiro” da velocidade. O holandês é de fato um piloto diferenciado, mas Hamilton também o é, e não é defenestrando as qualidades de um que se promove o outro. Apenas que ambos estão em situações diferentes em suas respectivas carreiras, e cada um tem uma postura igualmente diferente. Hamilton já arrumou muita encrenca fora e dentro da pista, assim como vários outros pilotos também tiveram seus rolos e confusões. Mas ele amadureceu, aprendeu com os erros, e sabe usar essa experiência a seu favor hoje em dia. Verstappen, por outro lado, ainda está marcando seu território: já não é um novato na categoria, tendo sido o piloto mais jovem a chegar à F-1. E sua ambição é ser campeão, e é claro que isso implica em derrotar o atual campeão. Mas o impetuoso piloto holandês ainda mostra precisar crescer um pouco em alguns aspectos. Ele já evoluiu muito desde que chegou à categoria, mas ainda peca em alguns detalhes. Detalhes que, vez ou outra, Hamilton tem explorado a seu favor, com resultados variados. É do jogo. E estamos vendo um duelo que incendeia paixões e torcidas. Por vezes, talvez até com alguns exageros.
É certo que, quando um piloto domina demais por algum tempo, cresce o sentimento e a torcida para que surja alguém que “derrube” esse piloto. Os motivos costumam variar, mas o desejo de que um domínio se encerre por ser ruim para a competição é até válido. Mas, quando isso demora a acontecer, a torcida fica bem mais raivosa na ânsia de que tal domínio acabe o quanto antes. Michael Schumacher parecia não ter rivais na F-1 durante boa parte de seu tempo na competição, e quando surgiu Fernando Alonso, um piloto capaz de desafiar o alemão, possuindo um carro à sua altura em 2005, o asturiano foi louvado e aplaudido como salvador da categoria. De parte dos brasileiros, o heptacampeão alemão carregava também a fúria da torcida por ver nele o piloto que “encerrou” a era Senna na F-1, com alguns até acusando-o pela morte do piloto brasileiro, completando com o fato de que na Ferrari Rubens Barrichello praticamente não tinha direito a disputar freadas com o alemão, que tinha todo o time, e mais um pouco, voltado para si.
Por isso, tanta louvação e aplauso para Max Verstappen, como um “salvador” que libertará a F-1 do domínio de Hamilton, que desde 2014 manda na competição, quase esquecendo que o inglês não teve exatamente vida fácil dentro da própria Mercedes em seus primeiros anos, tendo um colega de time forte que conseguiu vencê-lo em 2016, Nico Rosberg, que preferiu pendurar o capacete logo a seguir. Se é verdade que Valtteri Bottas não se mostrou páreo para Lewis no time alemão, o finlandês também teve chances de fazer melhor em determinados momentos, mas infelizmente, não teve a sorte a seu favor. E, neste momento de dificuldade tanto para Hamilton quanto para a Mercedes, estamos vendo o nível de diferença entre sua dupla de pilotos, com Bottas a infelizmente não conseguir acompanhar o ritmo de seu parceiro de time, e do rival Max Verstappen.
Os números de Hamilton na F-1 podem crescer ainda mais. Conquistando ou não seu oitavo título este ano, suas marcas já são mais do que históricas, e com mais alguns anos competindo, poderão crescer ainda mais. Quando ele deixar as pistas, terá um currículo com marcas espetaculares, justificando seu status de gigante entre os gigantes do automobilismo. E seus recordes serão batidos algum dia? Quando Michael Schumacher se aposentou, suas marcas eram consideradas inalcançáveis. Mas Hamilton conseguiu este feito. E quem poderá se candidatar a ir além? Verstappen é o primeiro candidato, pois é arrojado, talentoso, rápido, e ainda é bem jovem. Se tiver um carro competitivo, irá em busca destes recordes conquistados por seu rival. Quando, ou se conseguirá superá-los, é algo que só saberemos no futuro, mas assim como as marcas de Schumacher continuam a classificar o piloto alemão como um mito do esporte, as marcas de Hamilton continuarão com ele, surja ou não ou piloto que atinja marcas maiores.
Por enquanto, não podemos deixar de ficar assombrados com o feito de Lewis. Afinal, são 100 vitórias na F-1. Supremacia ou não da Mercedes tendo ajudado sobremaneira nesta conquista, o carro não andou sozinho em todas estas corridas. O feito do piloto inglês ficará para sempre registrado nos anais do esporte a motor, e na F-1. E agora, será que vem a 101ª vitória? Hoje começam os treinos oficiais para o GP da Turquia, e deveremos ter um novo embate entre o heptacampeão e seu desafeto holandês, na pista de Istambul Park, onde no ano passado Lewis carimbou o seu sétimo título. Este ano, ele não terá como repetir o feito, e está previsto mais um duelo na pista, que pode ser decisivo ou não para a disputa do campeonato. Acompanhemos com atenção o que irá acontecer...
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