Depois de uma longa ausência, hora de voltar a falar de alguns dos circuitos que já fizeram parte da história da Fórmula 1, e hoje trataremos do primeiro Grande Prêmio sediado por um país da América do Sul, e que não foi o Brasil. Sim, nosso país está no calendário da competição desde o início dos anos 1970, e desde então, com exceção de 2020, por causa da pandemia da Covid-19, sempre esteve presente na competição, mas a Argentina fez parte dos calendários da F-1 desde os anos 1950. Sim, muito antes dos brasileiros virem os carros da categoria máxima do automobilismo por aqui, nossos vizinhos portenhos já tinham tido esse privilégio muitos anos antes. Só que os argentinos não conseguiram se manter no calendário com seu GP como nós brasileiros tivemos a sorte de conseguir. Hoje, então, vamos conhecer o palco que sediou todas as edições da corrida argentina, o circuito de Buenos Aires, que acabou de completar mais de 70 anos de existência. Uma boa leitura a todos então...
BUENOS AIRES
Como todos sabem, a Argentina, nosso país vizinho, desde há muito tempo possui um automobilismo muito forte, e em boa parte do tempo, até superior ao automobilismo brasileiro. Portanto, nada mais óbvio de que nossos irmãos portenhos tenham sido os primeiros a ter representantes na categoria máxima do automobilismo, a F-1, sendo Juan Manuel Fangio o mais conhecido deles, e um dos gigantes da história do automobilismo mundial, tendo sido pentacampeão mundial de F-1, marca que permaneceu imbatível por décadas, até ser superada na primeira década deste século pelo alemão Michael Schumacher, e posteriormente, pelo inglês Lewis Hamilton, também com sete títulos.
No início dos anos 1950, contando com um automobilismo de competição extremamente forte, a maioria das provas, contudo, eram disputadas em estradas públicas, que eram fechadas ao tráfego quando realizadas as competições, situação que não oferecia as melhores condições de segurança. Determinado a impulsionar o setor, o então presidente Juan Domingo Perón reuniu-se com os principais nomes do automobilismo nacional, os pilotos Luigi Villoresi, Juan Manuel Fangio e José Froilan Gonzalez, para ver o que poderia ser feito a respeito, no que todos disseram que era imprescindível o país ter um autódromo permanente. Isso ofereceria um palco ideal para as competições do esporte a motor, e ajudaria a projetar a imagem da Argentina como um país de primeiro mundo no automobilismo. E assim foi feito.
Um terreno pantanoso na periferia da capital, Buenos Aires, no distrito de Lugano, foi escolhido como palco para o empreendimento, e iniciou-se a construção do novo circuito. Desde o início, a ambição era alta, e o novo autódromo foi construído nos mais altos padrões contemporâneos da época. A infraestrutura, com grandes arquibancadas e boxes e um total de 10 possíveis variações de layout do traçado, foi apresentado como uma grande realização nacional para promover o desporto automotivo.
A influência do presidente determinou a escolha do nome do autódromo, que ficou conhecido como Autódromo 17 de Octubre, em comemoração ao dia em 1945 em que Perón foi libertado do cativeiro. Inaugurado em 9 de março de 1952, três corridas promoveram a estréia da nova pista, sendo a mais importante a corrida de Fórmula Libre pela Copa Perón, vencida por Fangio em uma Ferrari 166FL no Circuito nº 4. Com Fangio fazendo sucesso na F-1, tendo inclusive sido campeão da temporada de 1951, não foi difícil atrair o novo campeonato mundial para o país, naqueles anos de primórdios daquela que viria a se tornar o mais importante campeonato automobilístico do planeta, ainda mais porque uma prova realizada na América do Sul ajudava a enfatizar a F-1 como um campeonato “mundial” de fato.
Assim, em 18 de janeiro de 1953, foi realizada a primeira edição do Grande Prêmio da Argentina. O traçado usado foi o Nº 2, com uma extensão de 3,912 Km, e a corrida, que abria a temporada da F-1 naquele ano, foi disputada em 97 voltas de duração. Largando em 2º no grid com a Maserati, Juan Manuel Fangio era o grande herói nacional da torcida. Dezesseis pilotos largaram, e além de Fangio, a torcida também tinha José Froilán Gonzalez, Oscar Gálvez, Carlos Menditeguy, Pablo Birger, e Adolfo Schwelm Cruz. A primeira pole do circuito foi de Alberto Ascari, da Ferrari, com o tempo de 1min55s400. A expectativa de uma vitória “em casa” animou a torcida, mas Fangio, a grande esperança de triunfo, abandonou a corrida após 36 voltas, devido a problemas na transmissão de seu carro. A vitória então, foi de Ascari, que liderou a corrida de ponta a ponta e se tornou o primeiro vencedor do GP da Argentina, e que marcou também a volta mais rápida da corrida, com o tempo de 1min48s400. A Ferrari, aliás, venceu em dobradinha, com Luigi Villoresi terminando em 2º lugar, tendo recebido a bandeirada de chegada 1 volta atrás de Ascari. Mas os argentinos não ficaram sem ter o que comemorar: José Froilán Gonzalez, da Maserati, fechou o pódio com a 3ª posição, e fez a festa dos torcedores.
Traçado usado pela F-1 entre 1953 e 1960. |
Apesar disso, a estréia da Argentina no campeonato da F-1 não foi a festa que todos esperavam, e não foi pela vitória ter sido de Ascari, frustrando os sonhos da torcida portenha, mas por algo muito mais grave e sério. Devido à decisão do presidente Perón de permitir o livre acesso ao circuito, como forma de promover a realização do GP, houve um número excessivo de espectadores, com muito pouco controle sobre eles, os quais chegaram a se alinhar na pista no início da corrida. No meio da corrida, na volta 31. eis que um dos espectadores entrou na pista e, para evitar atropelá-lo, Giuseppe “Nino” Farina, da Ferrari, foi forçado a desviar numa manobra abrupta. Farina acabou perdendo o controle de seu carro e colidiu com a multidão à beira da pista, matando 13 espectadores e ferindo mais de 40 pessoas. No pânico em massa resultante, um menino correu na frente do Cooper do piloto Alan Brown e foi morto no impacto. Foi o momento mais negro da história do autódromo argentino.
A corrida foi realizada até 1960, com exceção da temporada de 1959, utilizando essa configuração do circuito. Até àquela altura, Stirling Moss tinha o recorde da pole-position, com o tempo de 1min36s900, com Cooper/Climax. O britânico também detinha o recorde da volta mais rápida, com o tempo de 1min38s900. Nesse meio tempo, com a queda de Perón, o circuito passou a ser chamado de Autódromo Municipal Ciudad de Buenos Aires, nome que manteve até meados dos anos 1960, quando passou a ser chamado de Autódromo Municipal del Parque Almirante Brown de la Ciudad de Buenos Aires. Com a aposentadoria de Fangio, e a saída dos pilotos argentinos da F-1, o interesse pelo Grande Prêmio decaiu, o que levou à saída do campeonato. Mais de uma década se passaria, até que a categoria máxima do automobilismo retornasse a Buenos Aires, e enquanto isso, o autódromo continuou com muita atividade, sediando as mais variadas provas de competição do vigoroso automobilismo portenho. Fangio, contudo, ergueu firme o orgulho argentino, ao vencer o GP de seu pais nas etapas de 1954, 1955, 1956, e 1957.
O retorno da Argentina ao calendário da F-1 se daria com a ascenção de Carlos Reutemann, novo ídolo do esporte a motor nacional, e para se credenciar a ter novamente seu GP, foi realizada uma prova extracampeonato em 1971, o que possibilitou a volta da F-1 já no ano seguinte, em 1972, novamente abrindo a temporada da competição. O palco voltava a ser o circuito de Buenos Aires, mas agora com um traçado ligeiramente menor, embora usasse na prática o mesmo layout das provas dos anos 1950. A curva final do circuito, Horquilla, foi encurtada, com seu contorno, antes um grampo largo e amplo, com trechos de reta na entrada e na saída, tornando-se agora um trecho mais breve e com um chicane em sua saída, rumo à reta dos boxes. Essa modificação deixou o traçado com a extensão de 3,345 Km, e a corrida seria disputada em 95 voltas.
A segunda configuração usada pela F-1 em 1972 e 1973, com a nova formatação da curva final do traçado, a Horquilla, agora mais curta e fechada. |
Carlos Reutemann, com Brabham/Ford, alegrou os argentinos ao obter a pole-position para a corrida, marcando 1min12s460, mas quem riu por último foi Jackie Stewart, com a Tyrrel/Ford, vencendo a prova, e ainda marcando a melhor volta em 1min13s660. Reutemann, único argentino no grid, acabou tendo problemas e finalizou a corrida em 7º lugar, duas voltas atrás de Stewart. Esta nova configuração da pista para o GP de F-1 foi usada somente até 1973, tendo como recorde da pole-position a marca de 1min10s540 obtida por Clay Regazzoni, com a BRM. A prova foi vencida por Émerson Fittipaldi, o campeão reinante, com Lotus/Ford, que ainda marcou a volta mais rápida, com o tempo de 1min11s220. Para desgosto dos torcedores argentinos, Reutemann nunca esteve com chances de uma boa colocação na prova, largando em 9º, e abandonando com problemas de câmbio.
Para 1974, embora o GP da Argentina seguisse firme no calendário, foi feita uma modificação importante: a prova passava a usar a configuração extensa do circuito de Buenos Aires, com a adição do trecho que contornava o lago à beira da pista, com o restante do traçado permanecendo o mesmo. Isso aumentou a extensão do traçado para 5,968 Km, e a corrida agora seria disputada em 53 voltas. Nesta primeira corrida com a nova configuração, Ronnie Peterston, da Lotus/Ford abocanhou a pole-position, com o tempo de 1min50s780, mas a corrida acabou vencida por Dennis Hulme, com McLaren/Ford, enquanto a melhor volta da prova ficou novamente com Clay Regazzoni, da Ferrari, com o tempo de 1min52s100.
O traçado expandido, com o trecho circundante do lago, proporcionou ótimos pontos de ultrapassagem, aumentando as disputas entre os pilotos. |
O Grande Prêmio da Argentina permaneceria no calendário da F-1 até 1981, com esta configuração, à exceção da temporada de 1976, quando a prova ficou de fora. Na corrida de 1980, as condições da pista estavam críticas, com o asfalto se desmanchando frente à incrível sucção dos carros-asa, que quase ocasionaram o cancelamento da corrida. Reparos emergenciais foram feitos e a prova acabou realizada, mas mesmo assim as condições do traçado estavam péssimas. Para 1981, a corrida acabou realocada para o mês de abril (até então todas as corridas do GP da Argentina de F-1 tinham sido realizadas em janeiro de cada ano).
Então, em 1982, a guerra entre FISA e FOCA, com os pilotos no meio, incendiou o clima da categoria, o que fez com que os patrocinadores da prova argentina desistissem da empreitada, colocando a realização da corrida em perigo. A prova acabou inicialmente adiada por algumas semanas, mas aí então o governo da Argentina deflagrou uma guerra pela posse das Ilhas Malvinas (Falkland, para os ingleses) contra a Inglaterra, e sendo a F-1 uma categoria europeia em sua essência, e dominada por times ingleses, houve a ruptura contratual, e a prova acabou definitivamente cancelada. Assim, os recordes oficiais da F-1 para a prova no trecho expandido do circuito de Buenos Aires ficaram para Nélson Piquet, com Brabham/Ford, com a marca de 1min42s665 para a pole-position, e de 1min45s287 para a melhor volta da corrida, também marcada pelo próprio Nélson, na prova de 1981.
Carlos Reutemann, para desgosto de ter perdido o título daquele ano na F-1 para Piquet, também teve a frustração de nunca conseguir vencer o GP de casa, tendo passado perto em alguns momentos, como em 1975, quando foi o 3º colocado, resultado que repetiu em 1977. Em 1979, com Lotus/Ford, ele foi 2º colocado, atrás somente de Jacques Laffite, com Ligier/Ford. Ele repetiu o 2º lugar em 1981, agora com Williams/Ford, tendo sido derrotado justamente por Nélson Piquet, que venceu a prova, depois de largar na pole-position. Isso fez o argentino abandonar a F-1 ao fim da temporada de 1981. E nunca mais um piloto argentino teria destaque na categoria máxima do automobilismo.
Mais de uma década se passaria, até que a F-1 voltasse à Argentina, e mais uma vez ao autódromo de Buenos Aires, agora chamado oficialmente de Autódromo Oscar e Juan Gálvez, em homenagem aos pilotos argentinos Juan Gálvez (1916–1963) e Oscar Alfredo Gálvez (1913–1989). Reformado após ter sido adquirido por um grupo privado em 1991, o GP de F-1 usou uma nova configuração da pista, deixando de contornar o lago, em um layout muito similar ao do início dos anos 1970, mas agora com o uso de um trecho na parte interna do circuito, e com a curva Horquilla novamente modificada, com um traçado mais reto e menos travado, permitindo aos carros entrarem a plena aceleração na reta dos boxes. Esta configuração deixou o circuito com 4,259 Km de extensão, com a corrida sendo disputada em 72 voltas.
A última configuração usada pela F-1, com as mudanças nos trechos internos do autódromo, deixaram o traçado mais travado, o que prejudicou as disputas e dificultou as tentativas de ultrapassagens. |
David Coulthard, com Williams/Renault, marcou a primeira pole-position nesta nova configuração da pista, com o tempo de 1min53s241, e Damon Hill, seu companheiro de equipe, foi o vencedor da corrida, enquanto Michael Schumacher, da Benetton/Renault, marcando a melhor volta da prova, com 1min30s552. O novo traçado, ao deixar os trechos de contorno do lago de fora, se mostrou excessivamente travado, prejudicando as disputas da corrida, com as ultrapassagens ficando muito difíceis, algo que era muito favorecido pela existência do trecho do lago. Com dificuldades financeiras, a realização do GP sempre ficou na corda bamba, até que em 1998 teve sua última edição, que foi vencida por Michael Schumacher, com Ferrari, tendo David Coulthard, com McLaren/Mercedes, fazendo a pole-position, com o tempo de 1min25s852, e a melhor volta de Alexander Wurz, com Benetton/Mecachrome, com o tempo de 1min28s179. O recorde da pole, contudo, é de Jacques Villeneuve, com Williams/Renault, com o tempo de 1min24s473, obtido em 1997, com o recorde da melhor volta em corrida de Gerhard Berger, com Benetton/Renault, com o tempo de 1min27s981.
Até hoje, Juan Manuel Fangio é o maior vencedor do GP da Argentina, com seus 4 triunfos, obtidos consecutivamente entre 1954 e 1957. Émerson Fittipaldi contabiliza dois triunfos, em 1973 e 1975, mesmo número obtido por Damon Hill, que venceu em 1995 e 1996, com os demais pilotos vencendo apenas uma vez. Por equipes, a Williams é a maior vencedora, com 4 triunfos (1980, 1995, 1996, e 1997), seguida da Ferrari, com 3 vitórias (1953, 1956, e 1998). Maseratti (1954 e 1957), Cooper (1958 e 1960), McLaren (1974 e 1975) e Lotus (1973 e 1978) dividem o restante, com duas vitórias cada uma. Ao todo, foram 20 edições do Grande Prêmio da Argentina, todas realizadas no autódromo de Buenos Aires.
A prova argentina chegou a ser cogitada para fazer parte da temporada de 1999, mas as coisas não deram certo, de modo que a etapa de 1998 foi a última corrida da F-1 realizada no circuito de Buenos Aires, que desde então nunca mais viu os carros da categoria máxima do automobilismo se apresentarem por ali. Na década de 2010, surgiram boatos de que a Argentina começou a negociar a volta ao calendário da F-1, mas desta vez com a proposta de realização de uma corrida em circuito urbano, e não no autódromo da capital Buenos Aires, como sempre foi feito em ocasiões anteriores. As negociações, contudo, não foram adiante, devido a suspeitas de manobras irregulares nas tratativas, a ponto de Bernie Ecclestone, chefão da F-1 à época, afirmar que a F-1 voltaria com prazer à Argentina quando “houvesse pessoas sérias para tratar do assunto”, indicando que as negociações não foram encaradas com o devido interesse e propriedade que o assunto exigia.
Esquema do Autódromo de Buenos Aires, com todos os traçados da pista. |
A nova hipótese agora é da presença da Indycar, que poderia realizar uma etapa no país. O autódromo de Buenos Aires, contudo, agora tem um rival para brigar pela realização da prova, que é o Circuito de Termas de Rio Hondo, que tem recebido etapas da MotoGP recentemente. Pesa contra ele, contudo, o fato de ser no interior do país, enquanto a Indycar teria interesse por um local mais central, o que tornaria o circuito de Buenos Aires o preferido para a empreitada.
Afinal, mesmo tendo perdido a F-1 em fins dos anos 1990, o circuito da capital argentina continua com muito movimento, sediando até hoje provas das mais diversas categorias do automobilismo argentino, que mesmo nos tempos recentes de crise, ainda se mantém forte, apesar dos problemas. Até mesmo a Stock Car Brasil já correu por lá algum tempo atrás, e o autódromo mantém as excelentes condições pelas quais sempre foi conhecido desde a sua fundação, há mais de 70 anos atrás. Na verdade, aStock Car voltará a Buenos Aires este ano, com uma corrida programada para outubro.
Considerar a volta da F-1 à Argentina, contudo, no momento é algo quase impossível, devido à crise econômica vivida pelo país vizinho, e aos objetivos da Liberty Media, que embora planeje um calendário cada vez mais recheado de provas, não tem o país portenho como uma de suas metas a curto prazo, de modo que não se vê perspectivas da F-1 voltar a se apresentar na Argentina, seja no tradicional Autódromo Oscar e Juan Gálvez, ou em qualquer outro lugar no país.
Em 1995, a F-1 retornou à Argentina, depois de mais de uma década de ausência, e mais uma vez, correndo no autódromo de Buenos Aires. |
Em 1998, o último GP portenho, que teve vitória de Michael Schumacher, da Ferrari. |
A Stock Car já correu várias vezes em Buenos Aires. Acima, Rubens Barrichello vence uma das corridas de 2017 no autódromo. |
A TC2000 é uma das várias categorias que competem no Autódromo de Buenos Aires. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário